Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21


-Calavi: “As autoridades exigiram o
retorno desses objetos para desenvol-
ver o turismo de massa. No entanto,
corre-se o risco de serem colocados a
serviço de um projeto puramente
mercantil”, explica.
Professor de Arqueologia e Pré-
-História, Didier N’Dah descobriu
nos palácios reais oficinas muito an-
tigas de cunhagem de cauri (uma es-
pécie de búzio), a moeda da época.
Vestígios únicos desse tipo. Ele espe-
ra que “a restituição de objetos mo-
nárquicos também beneficie a pes-
quisa e o ensino superior, que podem
colocá-los em seu contexto histórico”,
e lamenta que os políticos não levem
em conta a opinião dos pesquisado-
res. Em seu escritório apertado e de-
sarrumado na Universidade de Abo-
mei-Calavi, ele fala com paixão sobre
as escavações que está realizando no
país, apesar da falta de recursos. Co-
mo faltava arqueologia preventiva,
vários locais foram destruídos duran-
te grandes obras financiadas pelo
Banco Mundial; outros estão amea-
çados por um projeto de oleoduto
realizado pela China, sem que os ar-
queólogos tenham se envolvido nos
estudos preliminares. Suas viagens
lhe permitiram perceber a riqueza do
patrimônio das populações rurais.
Eles preservam objetos religiosos, sa-
grados ou seculares, às vezes com vá-
rios séculos de idade, cuja história os
mais velhos ainda conhecem.
“Um programa deveria permitir
revelar toda a cultura que permanece
em torno desses objetos endógenos.
Antes de desenvolver o turismo em
larga escala, é necessário sensibilizar
as populações sobre o valor cultural e
patrimonial de seus bens, caso con-
trário elas os venderão”, avalia Didier
N’Dah. Até hoje, muitas peças ar-
queológicas e religiosas são compra-
das ou roubadas por intermédio de
redes de “agências” a serviço de anti-
quários locais que as revendem para
colecionadores estrangeiros. O patri-


mônio nunca deixa de sair do país,
vítima de tráfico ilícito.^6 Entre os
mais populares estão os objetos de
vodu, uma religião animista genera-
lizada no Benin.
Para Dominique Zinkpè, uma fi-
gura da arte contemporânea do Be-
nin, a responsabilidade dos amado-
res ocidentais, que permanecem ou
vivem no país, é uma questão. “As
obras que eles cobiçam não são en-
contradas nos centros de artesanato,
mas nas aldeias, e eles sabem que al-
guém precisa ser pago para roubá-
-las. As pessoas estão com fome; al-
guns estão dispostos a vender peças
muito importantes que estão no
quintal de seus avós”, explica. “E, se
há roubo, é porque há um cliente. Os
colecionadores estão procurando
apenas objetos sagrados, que faziam
parte de cultos. É criminoso da parte
deles, porque são parte integrante de
nossa religião”, reforça o artista. Os
intermediários usam a inf luência do
islã e das igrejas evangélicas para
pressionar seus seguidores a se livra-
rem dos acessórios de vodu conside-
rados demoníacos. “Sabemos aproxi-
madamente quantos de nossos
objetos estão em exibição nos mu-
seus franceses, mas não sabemos na-
da de tudo o que saiu e continua a
sair com os antiquários e coleciona-
dores particulares. As fronteiras são
porosas e o controle é difícil”, lamen-
ta Franck Ogou, diretor da Escola do
Patrimônio Africano (EPA) de Porto-
-Novo. Em princípio, apenas cópias
podem deixar o Benin, com um certi-
ficado emitido pelos serviços patri-
moniais. “Infelizmente, os coleciona-
dores aproveitam esses documentos
para substituir cópias pelos origi-
nais. Os funcionários aduaneiros de-
vem ser treinados, e um desejo real
de combater o tráfico deve ser afir-
mado”, observa Didier N’Dah.
Em 17 de janeiro de 2020, nos su-
búrbios de Cotonou, capital econômi-
ca do Benin, o Petit Musée de la Réca-

de realizou uma cerimônia incomum:
o embaixador da França, um repre-
sentante do ministro da Cultura do
Benin, membros da família real de
Abomei, o Coletivo de Antiquários de
Saint-Germain-des-Prés e uma pe-
quena multidão de artistas e estudan-
tes testemunharam a chegada de cer-
ca de trinta objetos pertencentes aos
reis de Abomei, a maioria bastões de
comando típicos do antigo Reino do
Daomé. O estabelecimento foi criado
em 2015 pelo negociante de arte fran-
cês Robert Vallois, um grande cole-
cionador de obras contemporâneas
do Benin, com o apoio de antiquários
de Saint-Germain-des-Prés. O museu
já incluía cerca de quarenta peças,
mas essa nova leva lhe valeu uma
consagração. “Para nós, a restituição
de obras é algo concreto! Criei este
museu para entregá-lo ao Benim, de-
corado com objetos do Benin”, excla-
ma Vallois. No entanto, para Debie, “é
um museu franco-francês que rece-
beu uma doação franco-francesa”.
Com essa operação altamente mi-
diática,^7 os que se opõem à restitui-
ção demonstram sua eficiência. Isso
também lhes oferece a liberdade de
criticar o Ministério da Cultura fran-
cês: os trinta objetos recebidos são
aqueles cuja venda foi suspensa em
março de 2019, em Nantes. Como o
Benin finalmente não os comprou, o
Coletivo de Antiquários de Saint-
-Germain-des-Prés os adquiriu, con-
forme planejado, por 24 mil euros. “O
Estado beninense poderia ter adqui-
rido. O que esse valor representa para
ele?”, indigna-se Bouli. “Estamos co-
meçando a duvidar da vontade dos
Estados africanos de salvaguardar
sua herança. Existem tantos interes-
ses particulares concorrentes neles
que os nacionais vêm por último”,
questiona. O ativista lembra que o Se-
negal, que herdou milhares de obje-
tos da antiga África Ocidental france-
sa, ainda armazenados nas
instalações do Ifan em Dacar, nunca

demonstrou intenção em devolvê-los
aos países de onde eles vêm.
Três anos após o discurso de Ma-
cron em Ouagadougou, nenhum in-
ventário de propriedades a restituir,
nenhuma revisão do Código do Patri-
mônio, nenhuma restituição efetiva.
No dia 17 de novembro de 2019, antes
de assinar um importante contrato
de venda de armas, o primeiro-mi-
nistro Édouard Philippe deu ao presi-
dente senegalês, Macky Sall, o sabre
de El Hadj Oumar Tall, um resistente
à colonização, na forma de um em-
préstimo de cinco anos ao Museu das
Civilizações Negras de Dacar. Depois
de causar muito barulho, o “eu que-
ro” presidencial, além da estratégia
de comunicação, permanece um de-
sejo piedoso.

*Philippe Baqué é autor de Un nouvel or
noir, pillage des œuvres d’art en Afrique
[Um novo ouro negro, pilhagem de obras de
arte na África], reeditado em 2021 pela
editora Agone.

1 Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le
patrimoine africain [Restituir o patrimônio afri-
cano], Philippe Rey/Seuil, Paris, 2018.
2 Nicolas Truong, “Restitutions d’art africain: Au
nom de la repentance coloniale, des musées
pourraient se retrouver vidés” [Restituições
de arte africanas: em nome do arrependimen-
to colonial, museus poderiam ser esvaziados],
Le Monde Diplomatique, 28 nov. 2018.
3 Réginald Groux, “Restitutions: et si on faisait
un peu d’histoire” [Restituições: e se fizésse-
mos um pouco de história], La Tribune de l’art,
Paris, 4 dez. 2018.
4 “Romuald Hazoumé: ‘Cela fait cinquante ans
que la culture béninoise est à l’abandon’” [Ro-
muald Hazoumé: “Há cinquenta anos a cultura
do Benin está abandonada”], Télérama, Paris,
17 set. 2016.
5 Ler Jean-Christophe Servant, “Protection de
la nature, safaris et bonnes affaires” [Proteção
da natureza, safáris e bons negócios], Le
Monde Diplomatique, fev. 2020.
6 Ler Philippe Baqué, “Enquête sur le pillage
des objets d’art” [Pesquisa sobre a pilhagem
de objetos de arte], Le Monde Diplomatique,
jan. 2005.
7 Cf. “Retour au Bénin de vingt-huit objets
appartenant aux anciens rois d’Abomey” [Re-
torno ao Benin de 28 objetos pertencentes
aos antigos reis de Abomei], Le Monde, 18
jan. 2020.
Free download pdf