Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23


feita mais em nome dos trabalhadores
do que em nome dos artistas. “Artista”
é uma atividade, “trabalhador”, uma
condição, e é a este título que os tra-
balhadores das artes podem preten-
der um salário vitalício desconectado
do emprego ou do benefício. E tam-
bém é pelo fato de serem produtores
que podem trabalhar para a livre or-
ganização das artes e da cultura.
Em matéria de produção, o domí-
nio do investimento é uma alavanca
decisiva. No capitalismo, são os acio-
nistas e os financiadores que deci-
dem o teor do trabalho e de sua orga-
nização. No setor das artes e da
cultura, os financiamentos provêm
seja do Estado (encomendas, subven-
ções, reduções fiscais etc.), seja dire-
tamente de potências capitalistas
(bancos, colecionadores, fundações
de empresa...). São atribuídos por
meio de uma concorrência desen-
freada entre os artistas e uma compe-
tição não menos feroz entre as
estruturas.
Não haverá autonomia das práti-
cas artísticas e culturais enquanto
permanecerem nessa configuração.
Com a luta pelo salário vitalício se


desenha uma mobilização para a
autogestão.
Matriz do seguro-desemprego, o
regime geral da Sécurité Sociale não
é apenas uma poupança para o salá-
rio dos funcionários de hospitais e
aposentados, mas também um caixa
de investimento que permitiu desen-
volver o hospital público sem recor-
rer a impostos nem a empréstimos.
Baseando-se nessa experiência, será
possível substituir os subsídios esta-
tais e o mecenato por investimentos
socializados.
Sob o modelo do “projeto para
uma imprensa livre”,^4 o financia-
mento das artes e da cultura poderia
ser assegurado por uma cotização so-
cial aplicada à produção global. A tí-
tulo de exemplo, uma taxa de 0,1%
sobre o valor agregado da mercadoria
(que corresponde ao valor econômi-
co criado pelas empresas todo ano,
ou seja, 1,439 trilhão de euros em
2018) permitiria socializar 1,4 bilhão
de euros por ano para financiar es-
truturas de produção e de difusão
não comercial ou sem fins lucrativos.
Esse valor alimentaria uma rede
de caixas geridos por representantes

sindicais dos trabalhadores do setor
das artes, artistas, pesquisadores,
políticos e cidadãos sorteados, cuja
missão seria atribuir financiamentos
em escala apropriada: nacional ou
departamental para um estabeleci-
mento público, comunal ou de bairro
para um organismo municipal ou
uma associação local.
Duas categorias de estruturas po-
deriam se beneficiar desses recursos:
de uma parte, os organismos públi-
cos ou em missão de serviço público;
de outra, as estruturas privadas sem
fins lucrativos. Certamente, o contra-
to entre a Sécurité Sociale e o Estado
afastará as empresas culturais capi-
talistas (galerias comerciais, multi-
nacionais do setor do divertimento,
plataformas de comércio on-line,
grandes produtoras etc.) e os difuso-
res ligados a grupos industriais e fi-
nanceiros (fundações de empresas).
Ao aumentar a taxa de cotização,
seria possível imaginar outros usos
desses recursos, como a gratuidade
de museus. Evoquemos, para con-
cluir, a proposta do sociólogo Ber-
nard Friot de utilizar uma parte da
cotização para aumentar os salários

por meio de um cartão de seguro
(carte vitale) “de centenas de euros
que só poderão ser gastos junto a pro-
fissionais convencionados da ali-
mentação, da moradia, dos transpor-
tes locais, da energia e da água, da
cultura”.^5

*Aurélien Catin, escritor, é autor de Notre
condition. Essai sur le salaire au travail artis-
tique [Nossa condição. Ensaio sobre o salá-
rio no trabalho artístico], Riot Éditions,


  1. Este artigo foi redigido com a colabo-
    ração da Association d’Éducation Populaire
    Réseau Salariat, que, neste momento, dis-
    cute perspectivas evocadas neste artigo.


1 Ver https://artengreve.com.
2 Ver http://www.blm-artsetculture.fr.
3 Cf. “Un nouveau modèle d’indemnisation du
chômage, Coordination des intermittents et
précaires d’Île-de-France” [Um novo modelo
de indenização do desemprego, Coordena-
ção dos Intermitentes e Precários da Île-de-
-France], nov. 2014. Disponível em: http://www.cip-
-idf.org.
4 Ler Pierre Rimbert, “Projet pour une presse
libre” [Projeto para uma imprensa livre], Le
Monde Diplomatique, dez. 2014.
5 Bernard Friot, “Penser un monde nouveau.
Une sécurité sociale des productions” [Pen-
sar um mundo novo. Um seguro social das
produções], L’Humanité, Paris, 20 maio 2020.

© Renato Caetano
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