Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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24 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


SER ÚTIL, TRABALHAR PARA O INTERESSE COLETIVO... OU NÃO


Desde o século XIX, os artistas interrogam-se se poderão viver de sua prática e
(o que está relacionado com essa questão) qual é seu papel na sociedade. Sobre esta
última, contudo, todos se questionam. Parasita inspirado? Fornecedor de alimento para
a alma? O artista possui uma especificidade que pode torná-lo útil ou utilizável?

POR EVELYNE PIEILLER*

Afinal, para que


servem os artistas?


M


aravilhoso: a arte é hoje
muito, muito bem-vista por
nossos políticos, parece até
uma solução milagrosa para
os múltiplos problemas suscitados ou
agravados pela “crise” sanitária e so-
cial atual. Sem exageros, trata-se
quase sempre da-arte-e-da-cultura,
seja lá o que se entenda por isso.
Mesmo assim, é um momento im-
pactante. Em 2 de maio, responden-

do a uma coluna chamada “A cultura
esquecida” (Le Monde, 30 abr.), assi-
nada por diversos artistas famosos,
Emmanuel Macron lhes dirigiu um
tuíte entusiasmado: “O futuro não
pode se inventar sem o poder de ima-
ginação de vocês”. Em 6 de maio, pa-
ra concluir seu encontro com alguns
outros, afirmou vigorosamente que
será lançado um programa de patro-
cínios públicos (voltado aos jovens,

sabe-se lá por quê...) e que “a criação
artística é algo essencial que se tor-
nou ainda importante para nossos ci-
dadãos durante este período”. A lín-
gua é hesitante, a ideia é poderosa.
Além disso, todo o confinamento
foi ritmado por elogios comoventes
aos poderes da arte, consoladora im-
prevista dos cidadãos – on-line, é cla-
ro, mas estando cada um deles pres-
tes a descobrir que esta “possibilita

ao mesmo tempo mantermos o elo
com os outros e nos fortalecer, prote-
ger, enriquecer”, como sintetizou o
presidente do Centro Pompidou.^1

“O QUE FAZEM NÃO SE
CHAMA TRABALHO”
A arte está sendo celebrada como ne-
cessária. Aliás, foi recrutada para a
operação presidencial do “verão de
aprendizado e de cultura”, destinado
a “recolocar [re-colocar?] as artes e a
cultura no cerne da vida dos jovens e
de suas famílias, a partir do verão”,
como se lê nos sites do Ministério da
Cultura e do Ministério da Educação
Nacional e da Juventude. Um exem-
plo, para esclarecer: o Teatro do
Odéon-Teatro da Europa, que obede-
ceu imediatamente, oferecendo in-
tervenções sobre as “mulheres na
obra de Molière” ou as Mil e uma noi-
tes. Educativo, agente da ligação so-
cial e até do cuidado, o artista se vê
alçado a uma posição entre os profis-
sionais úteis, senão indispensáveis.
Tal questionamento da utilidade
social, que talvez receba respostas
muito diferentes, ainda não foi feito
nem pelos artistas, nem por seus pa-
trocinadores, nem, de forma mais
ampla, pelo público. Durante sécu-
los, sua função não foi discutida: re-
cebiam encomendas e subsídios dos
poderosos, e contribuíam com suas
obras para cantar a glória destes últi-
mos, tornar sensível seu poder de in-
f luência, manifestar a grandiosidade
de uma comunidade nacional ou reli-
giosa, ou de uma classe em ascensão,
inclusive por meio do divertimento.
Pintores, dramaturgos, músicos, mal
possuíam sentimentos até então, o
que não os impedia de ter problemas
financeiros e de ego quando os mece-
nas lhes davam as costas. “Criadores”
ou “artistas”, eles encontraram seu
lugar na sociedade. Forneciam um
trabalho que raramente precisavam
justificar ou teorizar, senão perante
seus pares, como o fez Pierre Corneil-
le com O Cid, diante dos ataques da
Academia Francesa, que achou a pe-
ça um pouco controversa por causa
da verossimilhança e levemente cho-
cante para a moral.
A sociedade não questionava ain-
da a legitimidade de sua existência.
Foi preciso aguardar até o século XIX
para que a sociedade e os próprios
artistas se perguntassem para quem
e para que criam, e por quem e por
que podem ser remunerados. Os pa-
trocinadores do Antigo Regime desa-
pareceram, novos circuitos de difu-
são se instalaram, novos valores
também, tanto estéticos como mo-
rais. Para a opinião dominante, con-
forme definição maldosa, mas não
muito surpreendente, do Dicionário
das ideias feitas de Gustave Flaubert,
a arte desde então “leva ao hospital”

© Renato Caetano
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