AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25
- em outras palavras, à miséria –;
quanto aos artistas, “o que fazem não
se chama trabalho”.
Do lado dos artistas, o mal-estar
foi dominante. Cada vez mais nume-
rosos, cada vez mais sujeitos à apro-
vação do máximo de pessoas caso
desejassem “vencer”, indagaram-se:
produzir para os “burgueses” que
desprezamos? Para o povo que não
está interessado? Em um mundo que
privilegia o útil e o rentável, para que
serve a busca gratuita do ideal do Be-
lo? Desenvolveram-se então as pos-
turas do “artista maldito”, do incom-
preendido e também daquele que se
refugiava em sua “torre de marfim”,
reivindicando sua “inutilidade”, en-
tregue à solidão exaltada da arte pela
arte, enquanto se abria um fosso en-
tre os inovadores e o público. A exem-
plo de Honoré Daumier ou Camille
Pissarro, que colaboraram com jor-
nais; de Gustavo Courbet, que orga-
nizou ele próprio a exposição de suas
obras, separadas da seleção oficial
que as recusou por ocasião da Expo-
sição Universal de 1885; e de Victor
Hugo, que viria a escolher escrever
para o povo, todos os artistas do faus-
toso século XIX não queriam ser inú-
teis, fora do circuito, membros de
uma elite que só se preocupava con-
sigo mesma. Mas tal posição de rom-
pimento com a aristocracia, de rejei-
ção da – e pela – massa, induzida pelo
cenário político e social e em seguida
teorizada, pelo contrário, como coin-
ventada de forma espelhada pelo pú-
blico que os abandonou e pelos artis-
tas que este último marginalizou, iria
fixar uma representação do artista
como parasita mais ou menos inspi-
rado, diferente de outros cidadãos,
cuja prática e eventual talento se co-
locam “à parte”. E uma representação
da arte, de preferência uma que não
fosse rentável, como “alimento da al-
ma”, o que, para ser graciosamente
ambíguo, não quer dizer que estavam
menos do lado do supérf luo.
“À DEMANDA DOS CIDADÃOS”
Em momentos particulares da histó-
ria coletiva, porém, governos, socie-
dades, pintores e escritores passaram
a definir e empregar a utilidade dos
artistas, em planos diversos. Desse
modo, redescobrimos isso pouco de-
pois do New Deal, na boca de dirigen-
tes e seus intermediários. Apareceu
de repente como um modelo para
nossos tempos de “crise”. É verdade
que esse New Deal lançado pelo pre-
sidente Franklin Delano Roosevelt
em 1933 e que duraria até a guerra
constituiu uma reviravolta. Os artis-
tas foram considerados trabalhado-
res, dispondo de capacidades parti-
culares, podendo ser remunerados
como tais. O New Deal permitiu que
fossem recrutados atores (13 mil), es-
critores (7 mil), músicos (2,5 mil)...,
todos encarregados de uma missão
de interesse geral: criar a educação
popular, animar grupos de amado-
res, oferecer o teatro onde não havia,
gravar músicas negras do sul, reco-
lher relatos de descendentes de es-
cravos, embelezar os bairros com
murais (2.500), no espírito dos mura-
listas mexicanos Diego Rivera ou Da-
vid Siqueiros, escrever a história das
cidades, testemunhar com fotogra-
fias a Grande Depressão etc. Isso foi
impressionante.
De Orson Welles ao pintor Jack-
son Pollock, dos fotógrafos Dorothea
Lange e Walker Evans aos escritores
Richard Wright, autor de Black Boy,
Saul Bellow ou John Steinbeck, uma
boa parte desses que ainda nos são
necessários trabalhou nessa situa-
ção. Sua especificidade esteve a ser-
viço do interesse coletivo. Estiveram
longe do alimento da alma e da soli-
dão do excêntrico inadaptado.^2 Essa
integração do artista tendo como pa-
no de fundo greves maciças na in-
dústria, marchas da fome, reivindi-
cações trazidas principalmente por
um Partido Comunista bem ativo, foi
justificada por uma razão econômi-
ca – diminuir o número de desem-
pregados – e pela vontade de dar ao
país uma grande cultura nacional.
Os resultados seriam surpreenden-
tes, fazendo os atores-operários e a
comédia musical se reunirem,^3 au-
mentando a pintura regionalista,
multiplicando a confrontação de
profissionais e de amadores, f lores-
cendo o agitprop e a estética inspira-
da por Bertolt Brecht... Trabalharam
pela nação – alguns entenderam es-
tar trabalhando pelo povo –; sua uti-
lidade foi reconhecida sem contesta-
ção (25 milhões de norte-americanos
descobriram o teatro), mas o conjun-
to rapidamente pareceria muito
“vermelho” para os membros da Co-
missão de Atividades Antiamerica-
nas, na era do macarthismo.
Na mesma época, precisamente
na União Soviética, abriu-se outra via
para determinar os deveres que con-
feririam aos artistas seus direitos:
deveriam seguir a doutrina do realis-
mo socialista. Em 1934, no primeiro
Congresso de Escritores Soviéticos,
os estatutos de sua União cercaram
esta estética: “O realismo socialista,
na qualidade de método fundamen-
tal [...], exige do artista uma repre-
sentação verídica, historicamente
concreta, da realidade em seu desen-
volvimento revolucionário. Pelo ca-
ráter historicamente concreto e verí-
dico de sua representação da
realidade, ele deve contribuir para a
transformação ideológica e para a
educação dos trabalhadores no espí-
rito do socialismo”. Tratou-se tam-
bém, aqui, de ser útil, mas pela ade-
quação da forma e do cenário à
empreitada revolucionária. Enquan-
to o New Deal conheceu o esqueci-
mento antes de se tornar hoje um
exemplo, tal legitimação do artista
pela política, considerada uma sujei-
ção da liberdade do criador a normas
e objetivos ideológicos, não foi es-
quecida, e seu descrédito é até hoje
vibrante. Podemos, no entanto, nos
interrogar, quaisquer que sejam os
méritos excepcionais do New Deal:
que lugar existe para a “liberdade do
criador” quando, para ser assalaria-
do, deve-se estar a serviço da nação?
Questão ainda mais na ordem do
dia... Como evitar que o artista seja
reconhecido como necessário à so-
ciedade sem solicitar, de um ao acaso
ou do todo coletivo, que contribua
para a grandeza do país, eduque a po-
pulação, sirva para sua coesão, parti-
cipe de uma vontade coletiva, o que
pode implicar limitar suas aspirações
e atentar contra aquilo que há de
mais íntimo? O Les Nouveaux
Commanditaires [Os Novos Patroci-
nadores] estima ter a solução. Inicia-
do em 1991 pelo fotógrafo François
Hers, apoiado pela Fondation de
France e encorajado pelo sociólogo
Bruno Latour, esse movimento quer
fazer nascer uma “arte da democra-
cia”, pois, como afirma, em resposta à
proposta presidencial dos patrocí-
nios futuros, o historiador da arte
Thomas Schlesser, “a finalidade não
pode mais somente ser sustentar a
oferta criativa dos artistas plásticos,
arquitetos, compositores ou escrito-
res; na democracia, a finalidade deve
ser a de uma resposta à demanda dos
cidadãos”.^4 A fim de, por exemplo,
“tornar visível um lugar ou uma ativi-
dade depreciada, reviver uma memó-
ria, materializar um pertencimento
identitário, melhorar uma situação
de vida”, um protocolo de discussão e
negociação está em curso com o ar-
tista proposto como um mediador (os
artistas plásticos Daniel Buren ou Xa-
vier Veilhan, o arquiteto Patrick Bou-
chain...), o que “supõe de sua parte
uma bela escuta e aceitação de uma
horizontalidade verdadeira”. Foi as-
sim que nasceu, da necessidade de
nove habitantes do bairro, o coração
pulsante no alto de um mastro de 8
metros que avermelha a Porta de
Clignancourt, em Paris – uma obra da
artista portuguesa Joana Vasconce-
los. Nessa “arte da democracia”, “não
cabe mais ao ministério realizar uma
política cultural, cabe a nós – cida-
dãos e cidadãs, nós, artistas – condu-
zi-la juntos”, cabe a ela construir um
“sistema de delegação às empresas
privadas”. É preciso apostar que esse
modelo promovido por uma institui-
ção de direito também privado tenha
belas perspectivas: convida o artista
a casar temas eleitos pela ideologia
dominante, santificados pela “cida-
dania” e horizontalidade, o que auto-
riza a acabar com o princípio de uma
política pública e convida o novo pa-
trocinador a escolher em um catálogo
de artistas devidamente validados
pelo mercado. Do cliente ao prestador
de serviços, o artista é um embeleza-
dor que responde a uma demanda lo-
cal de cuidado. Decididamente...
Em 1935, nos tempos do então fas-
cismo, nazismo, início do Grande Ex-
purgo stalinista e da aurora da Frente
Popular francesa, acontecia em Paris
o Congresso Internacional de Escri-
tores pela Defesa da Cultura.^5 Os 230
participantes, entre eles muitos exi-
lados (Bertolt Brecht, Ernst Toller,
Heinrich e Klaus Mann etc.), interro-
garam-se sobre o sentido de seu tra-
balho, naquele preciso momento. Pa-
ra quem, para quê... Experimentar,
esclarecer? Escolher o íntimo ou o
político? Foi talvez com o filósofo Er-
nst Bloch que se desenhou uma res-
posta: “Resta no mundo uma boa
parte de sonho que ainda não foi uti-
lizado, de história que não foi elabo-
rada, de natureza que não foi vendi-
da”. Perceber aquilo que nos falta e
poder desejá-lo, eis o que é magnifi-
camente útil – a todos.
*Evelyne Pieiller é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.
1 Encontro com Serge Lasvignes, L’art est ab-
solument crucial [A arte é absolutamente cru-
cial], RFI, 17 mar. 2020.
2 Cf. Francis V. O’Connor, Art for the Millions:
Essays from the 1930’s by Artists and Admi-
nistrators of the WPA Federal Art Project
[Arte para os milhões: ensaios dos anos 1930
por artistas e administradores da WPA Fede-
ral Art Project], New York Graphic Society,
1975.
3 Cf. “Pins and needles”, une comédie musicale
syndicale [“Alfinetes e agulhas”, uma comédia
musical sindical], 42e Rue, France Musique, 2
nov. 2014.
4 Thomas Schlesser, Si on veut que la comman-
de soit l’avenir de l’art, il faut la rendre vraiment
démocratique [Se queremos que o patrocínio
seja o futuro da arte, é preciso torná-lo verda-
deiramente democrático], Le Monde, 8 jun.
- Cf. também Les Nouveaux commandi-
taires. Faire art comme on fait société [Os
Novos Patrocinadores. Fazer arte como faze-
mos a sociedade], Les Presses du Réel, Di-
jon, 2013, e o site http://www.nouveauxcommandi-
taires.eu.
5 Pour la défense de la culture. Les textes du
Congrès international des écrivains. Paris,
juin 1935 [Para a defesa da cultura. Os textos
do Congresso Internacional de Escritores.
Paris, jun. 1935], reunidos e apresentados
por Sandra Teroni e Wolfgang Klein, Éditions
Universitaires de Dijon, 2005.
Que lugar existe para a
“liberdade do criador”
quando, para ser
assalariado, deve-se
estar a serviço da nação?