AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27
a humilhação de Napoleão. O Con-
gresso de Viena, em 1815, desenhou
por cinquenta anos a Confederação
Germânica – uma reunião de princi-
pados e cidades livres, uma grande
parte da Prússia e da Áustria, que se
desafiavam. Tanto na arte quanto na
política, os conservadores se opuse-
ram aos progressistas do movimento
Jovem Alemanha, do qual eram pró-
ximos os escritores Georg Büchner e
Heinrich Heine. Os conceitos de Pe-
quena Alemanha, ao redor da Prússia
e sem a Áustria, e de Grande Alema-
nha, um Estado-nação ao redor da
Áustria, alimentavam as paixões.
Exasperação do orgulho luterano
diante da Áustria católica, sonho de
unidade nacional... O que há de mais
alemão que A paixão segundo São
Mateus? E mais unificador que
Johann Sebastian Bach, dirigido por
um gênio bem-educado de 20 anos?
Concerto fundador, gesto romântico,
patriótico e sagrado...
Em 1834, um trovão: a Inglaterra
criou a Haendel Society. Quinze anos
depois – choque! –, a primeira Bach
Society. Alguns alemães, entre eles
Robert Schumann, indignaram-se. A
resposta seria monumental. Para o
centésimo aniversário da morte do
compositor, fundaram a Bach-Ge-
sellschaft, cujo objetivo era a edição,
completa e crítica, de toda sua obra.
Franz Hauser, grande colecionador,
colaborou. Bach, que instalou as ba-
ses da tonalidade – o “pai da música”
–, também iria modificá-la. Aborda-
gem global do assunto, início da mu-
sicologia. Editaram 47 volumes em 49
anos, depois a sociedade se desfez.
Franz Liszt e Johannes Brahms eram
membros muito ativos.
Paris, 1835. O húngaro Liszt – ain-
da ele –, o polonês Frédéric Chopin e
o alemão Ferdinand Hiller tocam O
concerto para três cravos. Hector Ber-
lioz: “Era desagradável ver três talen-
tos admiráveis reunidos para repro-
duzir essa confusa e ridícula
s a l m o d i a”.^5 O que fazer? O momento
estava para o romantismo e, duas dé-
cadas depois, o Segundo Império se-
ria muito pouco luterano, muito pou-
co “temperado”. Além disso, Bach
tinha a reputação de ser impossível
de tocar e, sobretudo, adorava-se
Beethoven, o indomável, como dizia
Goethe. Ou como o entendia Victor
Hugo: “O grande inglês é Shakespea-
re, e o grande alemão é Beethoven”^6
- astro incontestável e lucrativo das
poderosas sociedades de concertos...
A França descobriria de verdade
Bach com cinquenta anos de atraso
em relação aos anglo-saxões. Em
1885, a Revue des Deux Mondes escre-
veu: “Johann Sebastian Bach é quase
famoso na França desde que Gounod
usou para o acompanhamento de
uma melodia de sua composição o
primeiro prelúdio de cravo do velho
mestre”. Viva! “Ave Maria!”, Bach não
é mais pedante nem chato! Foi graças
a Charles Gounod ou à Missa em si
menor executada pela Sociedade de
Concertos do Conservatório? Foi o
desgosto pelo romantismo, o simbo-
lismo ou a obra de órgão integral que
Marcel Dupré tocaria em Paris? Des-
cobrimos Bach, o respeitamos e so-
bretudo o tocamos!
Em 1889 o piano moderno acaba-
ra de ser inventado e Ferruccio Buso-
ni, um instrumentista de 20 anos,
louco por Bach, esteve em Leipzig
com Gustav Mahler e Edvard Grieg. É
preciso imaginar Leipzig, a famosa
sala do Gewandhaus e sua orquestra
outrora dirigida por Mendelssohn,
recebendo a fina f lor da Europa mu-
sical. Prelúdios, tocatas... O jovem
Busoni recriaria Bach, como Bach
havia transcrito Vivaldi. Ele abriu
um novo caminho. Desprovido de
órgão e coro, era apenas o piano, in-
teriorizado, que desenhava o contra-
ponto. Em seguida, meio século de-
pois, veio Dinu Lipatti, suas
interpretações claras do Bach de Bu-
soni, e chegamos muito rápido a Glen
Gould, detestando Busoni, embora
sua empreitada e aspirações fossem
muito próximas às dele. Gould, fe-
chado em seu estúdio, tocando, ge-
mendo. Gould, em seu tempo, fez o
mesmo por Bach que Bach fez por
Deus, segundo Emil Cioran. Gould e
seu Bach íntimo que lhe pertence,
absolutamente.
“No fundo, Bach era um arquite-
to.” Em Lambaréné, no Gabão, onde
se instalou às vésperas da Primeira
Guerra Mundial, Albert Schweitzer,
cidadão da Alsácia-Lorena anexada,
tocava um prelúdio de Bach no piano
com pedais. O Prêmio Nobel da Paz,
pastor, organista, médico-missioná-
rio, pregava com sotaque alsaciano e
saiu em turnê tocando Bach para fi-
nanciar seu hospital. Colonização
com fundo de música sacra... Pode-
mos discutir sua ação humanitária
ou seus talentos de organista, mas
gostamos de O músico poeta, seu es-
tudo publicado em 1905. Schweitzer,
o precursor, escreve sobre a força ar-
quitetural e simbólica do “Michelan-
gelo da música”.
Bach se reergueria da Segunda
Guerra Mundial. Aquela Alemanha
que difundia sua música pelos alto-
-falantes nos campos e obrigava as
orquestras de deportados a tocá-la
não era a sua. Vladimir Jankélévitch,
o filósofo-musicólogo, escreveu: “Eu
ousaria dizer que Bach me deixa en-
tediado?”. Não importava. Houve
uma explosão de Bach após a Liberta-
ção da França, ainda mais quando in-
ventaram o disco de vinil.
A continuação da história é mais
conhecida: da primeira gravação do
Cravo bem temperado em 1930 à ex-
plosão barroca nos anos 1950, com
Nikolaus Harnoncourt, seguido de
Gustav Leonhardt, preferindo tocar
instrumentos antigos, até sua recu-
peração política quando, sentado em
uma banqueta, o violonista Mstislav
Rostropovitch tocou a Suite n. 3 du-
rante a queda do Muro de Berlim.
Menos conhecido é seu legado, tal co-
mo foi colocado em prática por Ar-
nold Schönberg, Alban Berg ou John
Cage, por meio da invenção do dode-
cafonismo, a fuga em doze sons. Mais
adiante vieram os minimalistas, Ste-
ve Reich, Philip Glass...
Johann Sebastian Bach compara-
va cada parte de uma composição a
uma pessoa falando. Neste momento,
no espaço interestelar, as sondas Vo-
yager se afastam em direção ao infi-
nito. Elas carregam um disco de ouro
contendo a Partita n. 3.
*Agathe Mélinand, dramaturga e diretora,
escreveu e dirigiu Le petit livre d’Anna
Magdalena Bach [O pequeno livro de Anna
Magdalena Bach], em 2020.
1 Arquivos municipais, Leipzig. Bach tinha na
verdade 65 anos.
2 Súplica de Anna Magdalena Bach, arquivos
municipais, Leipzig, 1750.
3 Berliner Allgemeine Musikalische Zeitung,
mar. 1829.
4 Mozart, Carta a seu pai, arquivos Mozart, Salz-
burgo.
5 Hector Berlioz, Critique musicale, Buchet-
-Chastel, Paris, 1996.
6 Victor Hugo, William Shakespeare, 1864.
© Claudius