26 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020
MÚSICA
De 1750, ano da morte do compositor, multi-instrumentista, professor, cantor
e maestro, até os dias de hoje, a herança musical de Johann Sebastian Bach,
que instalou as bases da tonalidade, jamais parou de frutificar – uma vitória
da “música absoluta”, frequentemente celebrada, interpretada, recuperada...
POR AGATHE MÉLINAND*
Os usos de Johann
Sebastian Bach
E
m 31 de julho de 1750 enterra-
ram em Leipzig “um homem de
67 anos, o senhor Johann Sebas-
tian Bach, mestre de capela e di-
retor de coro da Escola Saint-Thomas,
falecido na terça-feira. Quatro filhos
menores, carro fúnebre grátis”.^1
A família do compositor se mu-
dou. Wilhelm Friedmann, o filho
predileto, dirigia a música da cidade
de Halle; Carl Philipp Emanuel era o
cravista da corte do rei da Prússia,
Frederico, o Grande... Os mais velhos
dividiram os bens, venderam os cra-
vos, os violinos e as cafeteiras. Anna
Magdalena, a madrasta, viveu “o la-
mentável estado de viúva”^2 durante
dez anos, em seguida morreu, discre-
tamente, na miséria. Ninguém escre-
veu uma ode fúnebre.
É interessante imaginar o velho
Bach esquecido e pensar que sua
Paixão segundo São Mateus, dirigida
em 1829 pelo jovem Felix Mendels-
sohn, em Berlim, foi uma ressurrei-
ção. Na verdade, o evento foi um clí-
max. Embora a fama do “cantor de
Leipzig” ultrapassasse pouco as
fronteiras da Saxônia na época de
sua morte, ainda que não fosse po-
pular, ele era conhecido. Seus filhos,
alunos, músicos, colecionadores e
mecenas propagaram sua posteriori-
dade até o “novo dia mais radiante”^3
de 1829, que fez Berlim entrar na his-
tória da música.
Deve-se imaginar que, na época
da morte de Bach, o reino da Prússia
balançava entre o humor galante, o
pietismo e o Empfindsamkeit (senti-
mentalismo). Escala menor e audácia
harmônica, dor e paixão! Nas cortes
principescas ou salões da burguesia,
evocava-se o Iluminismo e os pro-
gressos da indústria. O rei tocava
f lauta e escrevia a Voltaire. Após a
morte de Bach, Carl Philipp Emanuel,
bem mais famoso que seu pai, deu
entrada no registro da primeira edi-
ção de A arte da fuga. Foram vendidos
trinta exemplares. Embora estivesse
ocupado em consolidar o catálogo de
suas próprias obras, publicou o Obi-
tuário, muito útil para as futuras bio-
grafias de seu pai. Mas a herança mu-
sical se dispersou. Johann Christian
deixou os manuscritos em Berlim
quando partiu para Milão. Wilhelm
Friedmann, generoso, deprimido,
pobre e que não tocava mais nenhu-
ma nota da música de seu pai, doou-
-os ou vendeu-os – principalmente ao
pai de Mendelssohn. Carl Philipp
Emanuel publicaria ainda um terço
dos Corais a quatro vozes e em segui-
da também venderia os manuscritos.
Seriam precisos dois séculos para re-
cuperar tudo o que se dispersara.
Felizmente, Johann Philipp Kirn-
berger, seu aluno, lembrou-se do que
Bach lhe dizia: “Eu não exijo de você
nada além da garantia de que irá
transmitir essas poucas coisas a pes-
soas boas”. Os alunos, estudantes e
visitantes iriam compartilhar seus
ensinamentos, tocar suas obras e fa-
zer circular os manuscritos. Kirn-
berger, que se tornou mestre de ca-
pela na corte de Frederico, o Grande,
ensinaria composição a Ana Amália,
irmã do rei. Aluna dos filhos de Ba-
ch, ela se apaixonou pelo pai deles,
organizou concertos, colecionou os
manuscritos e constituiu uma incrí-
vel Bachbibliothek, hoje conservada
em Berlim. Ana Amália se lembrava
sem dúvida da visita do velho Bach a
Potsdam em 1747. O rei, que tocava
f lauta, executou a Oferenda musical
que o cantor lhe enviou.
Em 1782, Mozart escreveu de Vie-
na, capital repleta de arte: “Eu vou to-
dos os domingos ao meio-dia à casa
do barão Van Swieten, onde só toca-
mos Haendel e Bach”.^4 José II, o impe-
rador-músico, reinava. Novas leis e
decretos. Gottfried van Swieten, for-
midável diplomata melômano, ex-
-embaixador da Áustria em Bruxelas,
Paris, Varsóvia e Berlim, apoiava
Haydn, Mozart e Beethoven, que aos
12 anos tocava O cravo bem tempera-
do. Sua Gesellschaft der Associerten,
reunião de nobres melômanos, reunia
toda a nata musical de Viena. Swieten
faria tanto por Bach que Johann For-
kel, em 1802, dedicou-lhe Johann Se-
bastian Bach, sua vida, arte e obra, a
primeira biografia do compositor. No
subtítulo: “Para os patriotas admira-
dores da autêntica arte musical”.
Enfim, no começo do século XIX,
não havia um organista, cantor ou di-
retor de música que não possuísse
pelo menos uma partitura de Johann
Sebastian Bach.
Voltemos a Berlim, em 11 de mar-
ço de 1829, para o que a imprensa
chamaria de “a grande festa da reli-
gião e da arte”. Cem anos após sua
criação, se reviveria a Paixão segun-
do São Mateus. O rei da Prússia e a al-
ta roda de Berlim se sentaram na sala
da Singakademie, famosíssima asso-
ciação coral. Mendelssohn reescre-
veu e editou a obra. Seu professor já
se gabava de ter feito o mesmo em
uma carta a Goethe, em 1827: “Foi
assim que fiz o arranjo, para meu
uso pessoal, de muitas cantatas, e
meu coração me disse que lá de cima
o velho Bach me aprovava com um
movimento de cabeça: ‘Sim, está
certo!’”. Talvez. Embora o clima de
Beethoven predominasse, com a
dramatização dos sons e as viradas
cansativas do romantismo, a redes-
coberta da “música absoluta” encan-
tou: “A maior e mais sagrada obra de
arte musical de todos os povos!” e “o
próprio símbolo da fé protestante,
cuja pátria foi a Prússia”, exclama-
vam as resenhas.
É claro que o terreno havia sido
preparado, e não somente pelos pro-
jetos de edição ou pela publicidade.
Uma nova Europa se construía sobre
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