Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29



  • Você não sabe realmente o que
    significa esta frase?

  • Somente no semestre que vem
    eu vou começar a aprender inglês.
    O professor lhe entregou o papel.

  • Bem, você terá sua resposta no
    semestre que vem.
    O menino se recusou a pegar o pa-
    pel de novo, elevou um pouco a voz e
    insistiu:

  • Eu vim especialmente para lhe
    perguntar isso, andei mais de vinte lis!
    O professor parecia em dúvida.
    Seus olhos se voltaram, gelados, para
    o rosto da criança:

  • Vinte lis?

  • Vinte lis.
    Essa última réplica satisfez o ra-
    paz. Viu na expressão do professor
    que este estava surpreso e desconcer-
    tado, então prosseguiu:

  • Também vim à cidade com a in-
    tenção de comprar alguns livros.
    Aliviado, o professor lhe acariciou
    um pouco a cabeça e disse:

  • Já que você tem de ir à livraria,
    compre também um dicionário in-
    glês-chinês, lá você encontrará o que
    significa essa frase.
    E acrescentou:

  • Não tenho meu dicionário comi-
    go, não sei muito bem como traduzir
    essa frase corretamente para você.
    Ele parecia lamentar e falava com
    um sorriso confuso e pálido nos lá-
    bios. Em seguida, dobrou de novo o
    papel e deslizou-o na mão do
    menino.
    O moleque saiu da loja um pouco
    perdido e parou, desconcertado, na
    soleira. Na rua, uma maré humana se
    dirigia à feira, o calor do mês de ju-
    nho se espalhava e os vapores de suor
    fervente preenchiam o mundo. Ele
    hesitou e lentamente percorreu a ave-
    nida em direção à livraria. De repen-
    te, alguém surgiu de trás dele e bateu
    em suas costas.
    Ele parou. Virou-se. Era o adoles-
    cente que havia visto mais cedo na lo-
    ja. Dez centímetros maior que ele e
    parecendo dois ou quatro anos mais
    velho.

  • Sei o que significa a frase que vo-
    cê mostrou ao professor Zhao – disse
    ele estendendo a mão para que lhe
    entregasse o papel vermelho-escuro.
    O garoto o entregou. O mais velho
    o desdobrou e em seu rosto se formou
    um estranho sorriso:

  • Eu vou te dizer o que significa
    esta frase, mas você precisa me pagar
    uma melancia.
    O menino o encarou.
    O rapaz olhou ao redor e fixou o
    olhar na lateral da avenida. Havia lá
    uma barraca de melancias. O vende-
    dor estava exatamente descarregan-
    do-as para dispô-las no chão. Em
    uma mesa em frente a seu carro, uma
    fruta que tinha acabado de ser corta-
    da se avermelhava como um sol se
    elevando ao topo dos montes. O ado-
    lescente escolheu com habilidade
    uma melancia na bancada, entregou-
    -a ao vendedor para que a pesasse,
    deixou o menino pagar três yuans e
    vinte centavos e em seguida puxou-a
    para perto de si. Mais uma vez olhou
    para o papel e, com uma voz calma,
    declarou:

  • Essa frase quer dizer “Eu como
    s u a m ã e ”.
    O menino o examinou com ar de
    espanto, parecendo não compreen-
    dê-lo.
    O maior repetiu com seriedade:

  • É verdade! É “Eu como sua mãe”!
    Achando que o garoto poderia
    não estar acreditando nele, pela ter-
    ceira vez releu a frase em inglês e re-
    petiu a tradução “Eu como sua mãe”.
    O menino continuava simplesmente
    a encará-lo, com um leve tremor no
    canto dos lábios, e, quando o maior
    lhe estendeu o papel, voltou-se para
    a mesa, pegou a faca de cortar me-
    lancia e a enfiou, de uma vez, na
    barriga do adolescente. Tudo se pas-
    sou tão rápido que ninguém teve
    tempo de perceber nada. O maior
    não sentiu nenhuma dor, demons-
    trou certa surpresa diante do rumo
    que as coisas haviam tomado, emi-
    tiu um leve “Oh!”, largou a fruta e
    fraquejou, de joelhos no chão. O solo
    se avermelhou com uma poça, a res-
    peito da qual não se podia discernir
    se era de sangue ou de suco de
    melancia.


Assim que a lâmina perfurou o
mais velho, o garoto se afastou, apres-
sando-se com dificuldade. Saiu da
margem da avenida para se misturar
na massa humana, rápido como uma
gota que, caindo do toldo, tocou o solo.
Era o mês de junho, o calor se fazia
mais ardente. O mundo transpirava
um odor fétido. Na hora do almoço, o
menino tomou um ônibus para voltar
para casa. Seus pais, que comiam no
quintal, perguntaram-lhe por que
voltara tão cedo, não havia ido à feira?
O menino respondeu que havia muita
gente na cidade, que não estava inte-
ressante, e entrou rápido na cozinha
para beber um copo de água gelada
em um só gole. Quando reapareceu
no quintal diante de seus pais, um ba-
rulho alto e estridente ressoou da en-
trada do vilarejo: a sirene de policiais
de moto. Também se percebia o baru-
lho de passos dos habitantes locais
correndo atrás deles. As motos pare-
ciam vir para ali. Seu pai e sua mãe
aguçaram os ouvidos, curiosos, mas o
rapaz, com uma aparência pálida,
sentiu surgir em sua cabeça, como o
bote de uma serpente, uma frase em
inglês que havia aprendido alguns
dias antes. Então, com um sorriso rí-
gido, declarou em inglês:


  • Dad, mom: I love you!^2
    Pequim, 20 de maio de 2020^3


*Yan Lianke, escritor, é autor, especial-
mente, de Servir le peuple [A serviço do po-
vo], Un chant céleste [Um canto celeste] e
La Mort du soleil [A morte do Sol], todos
pela Philippe Picquier, Arles, respectiva-
mente em 2018 (reedição), 2019 e 2020.
Este texto foi traduzido do chinês (manda-
rim) por Brigitte Guilbaud.

1 O li é uma medida de distância chinesa cor-
respondente a 500 metros. (N.T.)
2 “Papai, mamãe, eu amo vocês!” (N.R.)
3 A pronúncia em chinês dessa data é muito pa-
recida com o som de “Eu te amo”. Com o de-
senvolvimento da internet, os chineses adquiri-
ram o costume, já há alguns anos, de expressar
seu amor ou seu afeto no dia 20 de maio. (N.T.)

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