Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3


EDITORIAL


O colapso de um


modelo de gestão


POR SILVIO CACCIA BAVA

N


a segunda metade dos anos
1990, o Brasil se destacou no
cenário internacional ao im-
plementar um dos maiores
programas de privatização dos servi-
ços públicos do mundo. O governo de
Fernando Henrique Cardoso, com o
Programa Nacional de Desestatiza-
ção, passava para as mãos do setor
privado, além de bancos e estatais
nas áreas de mineração, siderurgia e
petroquímica, a gestão das teleco-
municações, da eletricidade, de fer-
rovias, portos e rodovias, abrindo es-
paço também para privatizações na
área do saneamento básico e da dis-
tribuição de gás.
Para tornar atrativa para o setor
privado a exploração desses serviços
públicos, o governo reajustou as tari-
fas antes das privatizações. As agên-
cias reguladoras desses serviços, a
partir de então, viram-se controladas
por representantes do setor privado.^1
Os monopólios e cartéis empresariais
passaram a ditar os preços.
A pressão empresarial, nacional e
internacional, fez o Estado se retirar
das atividades econômicas e deixar
esse espaço para as empresas priva-
das. O interesse público foi substituí-
do pelo interesse privado, que trans-
formou bens públicos comuns em
mercadorias. E, como o objetivo des-
sas empresas é a maximização de seus
lucros, os preços aumentaram conti-
nuamente e os serviços se deteriora-
ram. Afinal, os lucros são distribuídos
para os acionistas e não são reinvesti-
dos na melhoria dos serviços.
Passados 25 anos, agora na contra-
mão dos neoliberais de todo o mundo,
o atual governo brasileiro continua
com os mesmos propósitos de des-
truir o Estado e os mecanismos de re-
gulação pública. Segundo o ministro
da Economia, Paulo Guedes, a inten-
ção é privatizar todas as estatais.
Acontece que não só as privatiza-
ções não trouxeram os benefícios es-
perados de redução de custos e me-
lhoria da gestão e dos serviços, como
também agora as empresas conces-
sionárias estão buscando socorro
junto ao Estado, pois seu modelo de
negócios está em colapso com a pan-
demia. O sistema de pagamento por
tarifas, pelo usuário, está em xeque.
O sistema público de transporte, já
fortemente subsidiado pelo Estado, é
expressão desse colapso.

Depois de 25 anos de gestão priva-
da da água por um duopólio, por de-
cisão legislativa, em 2010, a Prefeitu-
ra de Paris retomou a administração
direta da água. As razões para a reto-
mada do serviço público: os preços
subiram de forma continuada duran-
te o período e a qualidade do serviço
deteriorou-se. A conclusão anuncia-
da pelos legisladores é de que os inte-
resses das empresas privadas são in-
compatíveis com a prestação de um
serviço público.
Desde o início do século X XI há
um forte movimento de remunicipa-
lização de serviços públicos na Ale-
manha, na França, na Inglaterra, no
Canadá e em municípios dos Estados
Unidos. Em 265 municípios, os go-
vernos locais remunicipalizaram a
gestão da água nos últimos vinte
anos, algo que envolve cerca de 100
milhões de pessoas.^2
“Eliminando a lógica de maximi-
zação do lucro, imperativa no setor
privado, a remunicipalização da água
leva à melhoria do acesso e da quali-
dade dos serviços de água, bem como
a preços mais baixos, o que pode ser

observado em casos tão diversos co-
mo os de Paris (França), Arenys de
Munt (Espanha) e Almaty (Kazakhs-
tan). Em alguns casos os novos ope-
radores públicos também aumenta-
ram dramaticamente o investimento
nos sistemas de água, como é o caso
de Grenoble (França), Buenos Aires
(Argentina) e Arenys de Munt
( E s p a n h a ) ”.^3
A revalorização do papel do Esta-
do como provedor de serviços públi-
cos está no centro desse processo de
construção de novos bens comuns.
Água, moradia, saúde, educação,
transporte, segurança alimentar,
serviço social são direitos humanos e
precisam ser garantidos para todos.
Tornam-se, por essa razão, políticas
públicas de cobertura universal, isto
é, com garantia de acesso para todos.
Estamos na fronteira de criação/re-
cuperação de bens comuns.
O colapso do modelo baseado na
cobrança da tarifa abre espaço para a
reestatização desses serviços, para
que sejam financiados pelos impos-
tos e se tornem de uso universal e
gratuito, ou seja, se tornem bens co-
muns. É a reforma tributária cobran-
do mais impostos e evitando a sone-
gação das empresas e dos mais ricos
que garante esse novo modelo.
Para que adquiram essa qualida-
de de bens comuns, as políticas pú-
blicas que se orientam para atender a
essas demandas não podem ser fruto
apenas do saber técnico. Elas preci-
sam da participação dos coletivos
que na sociedade civil representam

esses interesses. Elas precisam da voz
do usuário, do beneficiário. Impõe-se
a democratização da gestão dessas
políticas.
Com a remunicipalização da ges-
tão da água, Paris criou um conselho
com a participação de usuários, tra-
balhadores em saneamento, cientis-
tas e representantes públicos, uma
inovação democratizadora que abre
uma nova relação do governo com a
cidadania.
No Brasil, para nossa desgraça, te-
mos um governo federal que conti-
nua a defender, mesmo em plena
pandemia, as políticas de austerida-
de. Na contramão das principais cor-
rentes do neoliberalismo, que aca-
bam de reconhecer a importância do
Estado e do investimento público pa-
ra tirar o país do atoleiro, o Ministé-
rio da Economia quer continuar as
reformas de privação de direitos e
privatizações para destruir o Estado,
ceder o patrimônio público aos inte-
resses privados e reduzir os custos
das empresas com a mão de obra. In-
teresse público? Zero.

1 Armando Castelar Pinheiro e Kiichiro Fukasa-
ku, “A privatização no Brasil: o caso dos servi-
ços de utilidade pública”, OCDE/BNDES,
1999.
2 Júlia Dias Carneiro, “Enquanto Rio privatiza,
por que Paris, Berlim e outras 265 cidades
reestatizam saneamento?”, BBC Brasil, 23
jun. 2017.
3 Sandoval Alves Rocha, “A remunicipalização
dos serviços de água e esgoto é uma
tendência global”, 7 fev. 2020. Disponível
em: https://amazonasatual.com.
br/a-remunicipalizacao-dos-servicos-de-a-
gua-e-esgoto-e-uma-tendencia-global/.

© Claudius
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