Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

36 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


Terrorista um dia,


sempre terrorista?


A Convenção Europeia dos Direitos Humanos proibiu a manutenção de um condenado na prisão “sem nenhuma
esperança de sair”. Essa parece, contudo, ser a sorte do militante comunista libanês Georges Ibrahim Abdallah,
preso na França há mais de um terço de século. O prolongamento de sua detenção deve-se muito ao clima
criado por atentados que lhe são estranhos

POR PIERRE CARLES*

F


im de março de 2020. A fim de
esvaziar as prisões francesas
num momento em que a pande-
mia do coronavírus ameaça
provocar uma catástrofe, a ministra
da Justiça, Nicole Belloubet, ordena a
liberação de 13,5 mil presos nos dois
meses seguintes. Trata-se principal-
mente de pessoas que já cumpriram
a maior parte da pena. No momento
em que a ministra toma essa decisão,
a prisão de Lannemezan (região
Hautes-Pyrénées) abriga Georges
Ibrahim Abdallah, um militante co-
munista libanês que combateu a
ocupação de seu país por Israel em


  1. Ele cumpriu sua incompreen-
    sível pena em 27 de outubro de 1999.
    O homem então poderia ter sido li-
    bertado desde... o século passado.^1
    Em 2020, ele começou seu 36º ano
    de encarceramento. Um “recorde
    francês” nos últimos cinquenta anos
    para um militante político. Exceção
    feita à Itália, um encarceramento tão
    longo é excepcional nos países da
    União Europeia.
    Georges Ibrahim Abdallah foi jul-
    gado e condenado por cumplicidade
    em um homicídio doloso. Aos olhos
    da Justiça, ele não é um assassino.
    Durante seu processo, ele negou ter
    participado das ações pelas quais foi
    preso e condenado, mas se declarou
    solidário a certas lutas militantes ra-
    dicais, expressando seu apoio às Fra-
    ções Armadas Revolucionárias Liba-
    nesas (FARL), um grupo de resistentes
    comunistas que pegou em armas e as-
    sassinou, em 1982, o adido militar da
    embaixada dos Estados Unidos, Cha-
    les Ray, assim como um funcionário
    israelense membro do Mossad (servi-
    ço secreto israelense), Yacov Barsi-
    mentov, ambos com cargos em Paris.
    Naquele ano, Israel atacava o Líba-
    no, com a bênção da administração
    Reagan, para tentar destruir a Orga-
    nização para a Libertação da Palesti-
    na (OLP) e matar ou capturar Yasser
    Arafat, o líder da resistência palestina.
    Aos olhos das FARL, os dois assassina-


tos constituíam um ato de resistência
armada a uma agressão militar. E du-
rante seu processo, em fevereiro de
1987, Abdallah afirmou: “Mesmo que
o povo não tenha me confiado a honra
de participar dessas ações anti-impe-
rialistas que vocês me atribuem, pelo
menos eu tenho a honra de ser acusa-
do delas por sua corte e defender sua
legitimidade diante da ilegitimidade
criminosa dos algozes”.

“TODOS OS BARBUDOS SE PARECEM”
Que outra razão poderia justificar a
não liberação, em 2020, de um cúm-
plice de homicídio que cumpriu 36

anos de encarceramento? Seu com-
portamento na detenção inspira o
respeito dos guardas, e o diretor da
prisão gosta de conversar com ele a
respeito da situação no Oriente Mé-
dio. Por mais estranho que possa pa-
recer, foram os guardas sindicaliza-
dos do centro penitenciário que, não
entendendo por que seus camaradas
não se mobilizavam para solicitar
sua liberação, alertaram os militan-
tes da célula comunista da cidade de
Tarbes sobre a presença desse mar-
xista libanês em longa detenção.
Sua não liberação, contudo, en-
contra explicação no discurso profe-

rido pela ministra da Justiça na As-
sembleia Nacional em 8 de abril, em
plena pandemia. Nesse dia, Belloubet
precisou que ela excluía das libera-
ções antecipadas “os criminosos,
pessoas condenadas por violência
doméstica e detentos terroristas”. E,
mesmo que o grupo armado ao qual
Abdallah deve ter pertencido não te-
nha cometido ações terroristas no
sentido que se entende atualmente
(atentados indiscriminados, bombas
nas ruas, assassinatos de civis desti-
nados a aterrorizar a população), a
justiça francesa o qualifica como
“terrorista”. Por quê? Por causa de

© Robert Pratta/ Reuters

A PRISÃO PERPÉTUA DE GEORGES IBRAHIM ABDALLAH PARA AGRADAR AOS ESTADOS UNIDOS


George Ibrahim Abdallah escoltado por um guarda francês quando ele chega ao tribunal de Lyon, em 10 de julho de 1986
Free download pdf