Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

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AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37


atos de fato criminosos, mas dos
quais as FARL não são responsáveis...
Alguns meses antes do compare-
cimento de Abdallah ao tribunal, em
Paris, no final de fevereiro de 1987,
atentados atingiram a capital (RER,
correios, lojas Tati). Resultado: cator-
ze mortos e mais de duzentos feridos.
A maioria das grandes mídias (Le
Monde, Libération, Le Figaro, RTL,
France Inter, Europe 1, as principais
redes de televisão) veiculou o pensa-
mento do ministro do Interior, Char-
les Pasqua, e de seu adjunto, Robert
Pandraud.^2 Ambos atribuíam às
FARL e aos irmãos de Georges Ibrah-
im Abdallah a responsabilidade des-
sas ações terroristas. Porém, como
Pandraud e Pasqua iriam admitir al-
guns anos depois, eles caluniaram o
nome de Abdallah na imprensa a fim
de dissimular o fato de não saberem
no momento quem eram os respon-
sáveis pelas bombas: “Lançamos a
pista das FARL com base nos primei-
ros testemunhos, mas sabíamos que,
para os franceses, que pensavam ter
reconhecido os irmãos Abdallah nos
locais, todos os barbudos do Oriente
Médio se pareciam”, admitiu Pan-
draud. “Eu me disse que colocar em
destaque a pista Abdallah não faria
mal, mesmo se não fizesse bem. Na
verdade, não tínhamos nenhuma
pista na época.”^3
Jornalistas inf luentes (Edw y Ple-
nel e Georges Marion, na época in-
vestigadores no Le Monde, Charles
Villeneuve na rede de televisão TF1
etc.) deram crédito à “pista Abdal-
lah”. Eles sugeriam que os irmãos de
Abdallah teriam tentado pressionar o
governo francês para obter a libera-
ção de seu camarada encarcerado ex-
plodindo bombas. Na verdade, po-
rém, os atentados terroristas de 1986
foram cometidos por membros do
Hezbollah libanês, instrumentaliza-
dos por Teerã. Na época, o Irã recri-
minava a França por apoiar militar-
mente o Iraque de Saddam Hussein
em sua longa guerra assassina contra
a República Islâmica (1980-1988; 1
milhão de mortos).
As FARL, por sua vez, não pratica-
vam atos terroristas contra civis, mas
assassinatos cujos alvos eram milita-
res. No entanto, inf luenciada pelas
falsas informações veiculadas pela
mídia, a justiça francesa não duvidou
do caráter “terrorista” dos atos dos
quais Abdallah e as FARL eram acu-
sados. Desde então, é impossível reti-
rar esse rótulo.
Em 25 de fevereiro de 2020, em
Beirute, Bruno Foucher, embaixador
da França no Líbano, recebeu uma
dezena de jornalistas para almoçar.
Entre a sobremesa e o café, ele foi in-
terpelado por um correspondente
francês sobre o caso de Georges
Ibrahim Abdallah.


O diplomata dificilmente conse-
gue fingir ignorar o caso. Em todos os
14 de Julho, em Beirute, centenas de
manifestantes se colocam diante de
sua embaixada para reclamar a libe-
ração do compatriota. Desde 2004,
data do primeiro pedido de liberdade
condicional rejeitado, o militante li-
banês viu seu pedido de liberação ser
rejeitado sete vezes. Como podería-
mos esperar, Foucher respondeu que
o caso está vinculado à justiça e não à
diplomacia ou ao poder político. No
entanto, como veremos, sob a presi-
dência de François Hollande, o mi-
nistro do Interior, Manuel Valls, in-
terveio diretamente para bloquear a
liberação de Abdallah.
O secretário nacional do Partido
Comunista Francês (PCF), Fabien
Roussel, endereçou em 14 de abril de
2020 uma carta à ministra da Justiça.
Ele pedia a liberação de Abdallah, es-
timando que “ninguém pode afirmar
hoje que ele representaria um perigo
qualquer que fosse para nosso país”.
Roussel antecipa assim as asserções
do governo norte-americano, para
quem “a prisão perpétua é apropria-
da aos graves crimes perpetrados por
Abdallah e é legítimo se preocupar
com o perigo que ele representaria
para a comunidade internacional se
f o s s e l i b e r t a d o”.^4 Deputado no norte,
o dirigente do PCF sabe que em cer-
tos locais ele é o “Nelson Mandela do
Oriente Médio”. As comunas de Gre-
nay e Calonne-Ricouard (Pas-de-Ca-
lais) fizeram dele cidadão de honra.
Belloubet respondeu a Roussel em
6 de maio: “Não cabe ao Ministério
da Justiça dar qualquer tipo de ins-
trução aos procuradores em se tra-
tando de casos individuais, nem de
interferir em processos judiciários.
[...] A autorização de um ajuste de pe-
na cabe apenas à competência das ju-
risdições da aplicação de penas que
apreciam soberanamente e em toda
independência da oportunidade de
conceder tal medida”. Mas, seis se-
manas antes, o governo francês sol-
tava Jalal Rohollahnejad, um enge-
nheiro iraniano preso no aeroporto
de Nice sob pedido norte-americano.
A justiça tinha dado um parecer favo-
rável à sua extradição para os Estados
Unidos; o homem estava quase sendo
entregue às autoridades norte-ameri-
canas, mas o Irã então propôs à Fran-
ça uma troca, com a liberação do pes-
quisador francês Roland Marchal. E,
em 20 de março de 2020, Rohollahne-
jad embarcou em um avião para Tee-
rã, enquanto Roland Marchal tomava
o caminho contrário. Quando se tra-
ta de Abdallah, no entanto, o poder
político francês o mantém em deten-
ção para agradar a Washington.
A ingerência norte-americana
nunca deixou de existir nesse caso.
Em 21 de novembro de 2012, enquanto

o Tribunal de Aplicação das Penas
(TAP) se pronunciava a favor da libe-
ração de Abdallah, o embaixador dos
Estados Unidos na França, Charles Ri-
vkin, deixava público em um comuni-
cado que ele “lamentava a decisão do
TAP de conceder a liberdade condicio-
nal ao terrorista reconhecido culpado
Georges Ibrahim Abdallah”. Ele acres-
centava: “Espero que as autoridades
francesas apelem contra a decisão to-
mada hoje e que ela seja anulada”.
Apelaram contra a decisão. E, dessa
vez, em 10 de janeiro de 2013, a Corte
de Apelação confirmou que Abdallah
deveria ser libertado. Não tendo na-
cionalidade francesa nem visto de
permanência, só lhe restava deixar o
território francês. Seu advogado, Jac-
ques Vergès, já exultava: “Acolho com
satisfação essa decisão, pois tinha pe-
dido à justiça francesa que não se
comportasse mais como uma prosti-
tuta diante de seu cafetão norte-ame-
ricano”. A liberação de seu cliente só
aguardava a assinatura do documen-
to de expulsão – uma formalidade.

No dia seguinte à decisão da Corte
de Apelação, porém, a porta-voz do
Departamento de Estado norte-ame-
ricano, Victoria Nuland, afirmou:
“Estamos decepcionados com a deci-
são da corte francesa [...]. Não pensa-
mos que ele deva ser libertado e con-
tinuamos nossas conversas com o
governo francês a esse respeito”.^5 En-
tão secretária de Estado do presiden-
te Barack Obama, Hillary Clinton
contava com o fato de que alguns
membros do governo francês, entre
os quais o ministro das Relações Ex-
teriores, Laurent Fabius, se mostra-
riam receptivos aos pedidos da Casa
Branca. Depois da decisão da Corte
de Apelação, enquanto se preparava
para deixar o Departamento de Esta-
do, Hillary transmitiu a seguinte
mensagem: “Mesmo que o governo
francês não seja legalmente autoriza-
do a anular a decisão da Corte de
Apelação de 10 de janeiro, nós espe-
ramos que as autoridades francesas
possam encontrar outra base para
contestar a legalidade da decisão”.^6
Responder positivamente a esse pe-
dido, contudo, impunha a concor-
dância da ministra francesa da Justi-
ça, Christianne Taubira, que tinha,
alguns meses antes, emitido uma cir-
cular proibindo que ela própria, as-

sim como qualquer outro membro do
Executivo, dirigisse instruções aos
magistrados.

MACRON É INTERPELADO EM TÚNIS
Com quem os Estados Unidos e Lau-
rent Fabius poderiam contar para
derrubar, apesar disso, a liberação de
Abdallah? A resposta veio três dias
depois. Em 14 de janeiro de 2013, o
ministro do Interior, Manuel Valls, se
recusou a assinar o termo de expul-
são de Abdallah. Surpresa com essa
intervenção de um membro do Exe-
cutivo em um caso do Judiciário – o
que contradizia sua circular de se-
tembro de 2012 –, a ministra Chris-
tianne Taubira reclamou o arbítrio
do presidente da República. Hollande
não interveio. Ele deixou seu minis-
tro do Interior agir, na época muito
mais popular do que ele. E o militan-
te comunista libanês continuou na
prisão. No Líbano, sua família já es-
tava a caminho do aeroporto de Bei-
rute para recebê-lo.
Emmanuel Macron foi interpela-
do sobre o caso Abdallah em sua pri-
meira visita oficial à Tunísia em 1º de
fevereiro de 2018. Enquanto passeava
pela medina da capital, militantes
tunisianos começaram a gritar “Li-
berte Abdallah!”. Nas imagens dos te-
lefones celulares que imortalizaram
a cena, vemos que o presidente da Re-
pública se volta espantado para seus
conselheiros. Ele parece não enten-
der o que está acontecendo, até que
um oficial tunisiano acompanhando
a delegação explica quem é esse Ab-
dallah. De volta à França, nada acon-
tece. Menos de três meses depois de
ter sido interpelado em Túnis, Ma-
cron libertou uma prisioneira co-
mum condenada à prisão perpétua
por assassinato.
A Convenção Europeia dos Direi-
tos Humanos proíbe que se condene
um detento “sem nenhuma esperan-
ça de saída”. No entanto, isso parece
corresponder ao destino do militante
comunista libanês Georges Ibrahim
Abdallah.

*Pierre Carles é diretor do filme Who
wants Georges Ibrahim Abdallah in jail?
[Quem quer Georges Ibrahim Abdallah na
prisão?], atualmente em realização.

1 Ler Alain Gresh e Marina da Silva, “Un prison-
nier politique expiatoire” [Um prisioneiro políti-
co expiatório], Le Monde Diplomatique, maio
2012.
2 Ler Pierre Carles e Pierre Rimbert, “Des plu-
mes empoisonnées” [Penas envenenadas],
Manière de Voir, n.172, “Fake News, une faus-
se épidémie” [Fake news, uma falsa epide-
mia], ago.-set. 2020.
3 Citado por Pierre Favier e Michel Martin-Ro-
land, La décennie Mitterrand [A década Mit-
terrand], Seuil, 1996.
4 Declaração de Charles Rivkin, embaixador
dos Estados Unidos na França, 21 nov. 2012.
5 Reuters, 12 jan. 2013.
6 Mensagem de 11 jun. 2013, “Hillary Clinton
archive”. Disponível em: https://wikileaks.org.

Seu comportamento na
detenção inspira o res-
peito dos guardas, e o
diretor da prisão gosta
de conversar com ele a
respeito da situação no
Oriente Médio
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