Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ AGOSTO 2020


CAPA


Bolsonaro, a pandemia


e a explosão das


demandas sociais


O


primeiro ano do governo Bol-
sonaro foi de múltiplas priva-
ções para a sociedade brasilei-
ra. As reformas trabalhista e
previdenciária e as medidas de auste-
ridade resultaram, entre outras ma-
zelas, na queda do PIB per capita em
dólar em 2019 (–3,2%) e na continui-
dade da trajetória de precarização do
trabalho, uma vez que a maior parte

dos trabalhadores e das trabalhado-
ras se encontrava na informalidade
(38 milhões de pessoas), desempre-
gada (12 milhões de pessoas) ou su-
butilizada (28 milhões de pessoas).^1
Mas o que estava ruim piorou: o en-
contro de um governo inapto e irres-
ponsável com um vírus altamente
contagioso e devastador resultou nu-
ma explosão de demandas sociais

que não encontram no aparato públi-
co estrutura e financiamento ade-
quados para serem atendidas.

O CENÁRIO PRÉ-PANDEMIA
Como era de esperar, o aumento da
pobreza – e de sua face mais perversa,
a fome – apareceu já no primeiro ano
do governo Bolsonaro. Dados divulga-
dos pela Organização das Nações Uni-
das para a Alimentação e a Agricultura
(FAO)^2 revelam que, no período 2014-
2016, a prevalência da insegurança
alimentar severa ou grave era de 18,3%
da população; nos anos 2018-2019, es-
se percentual elevou-se para 20,6%, o
que representa um contingente de
mais de 43 milhões de pessoas que
não se alimentam adequadamente.
A recessão prolongada foi agrava-
da por políticas governamentais de
cortes orçamentários expressivos e
medidas que acirraram as já abissais
desigualdades. Menciona-se, por
exemplo, a Emenda Constitucional n.
95/2016, conhecida como “Teto de
Gastos”, que congelou as despesas
públicas da União por vinte anos.
Outra regra bastante restritiva é a
que fixa anualmente limites para o
déficit primário da União.
Um exemplo da atuação irrespon-
sável do governo Bolsonaro desde an-
tes da pandemia é a diminuição de
um dos maiores programas de trans-
ferência de renda do mundo. Com
efeito, apesar do empobrecimento
crescente, em 2019, segundo o IBGE,^3
13,5% dos domicílios recebiam di-
nheiro do Programa Bolsa Família.
Essa proporção era de 15,9% em 2012.
Outro exemplo significativo foram os
ataques às políticas socioambientais,
que levaram até mesmo o setor em-
presarial brasileiro a enviar carta ao
vice-presidente da República, atual
presidente do Conselho Nacional da
Amazônia, pedindo que o governo
adotasse ações para superar a crise
ambiental.

O SUBFINANCIAMENTO DAS
POLÍTICAS UNIVERSAIS DE
SAÚDE E EDUCAÇÃO
Recente análise realizada pelo Inesc
e publicada no relatório “Brasil com
Baixa Imunidade – Balanço do Orça-
mento Geral da União em 2019” reve-
la que grande parte das políticas so-
ciais e ambientais vem sofrendo
cortes sistemáticos de recursos des-
de o início da austeridade, ampliada
no último ano.
No caso da educação, o estudo
mostrou que, em 2019, o que foi efeti-
vamente pago é da ordem de R$ 20 bi-
lhões a menos que em 2014, em ter-
mos reais. Isso acontece num país
que apresenta indicadores educacio-
nais sofríveis, haja vista os dados da
última Pesquisa Nacional por Amos-
tra de Domicílios (Pnad Educação)
demonstrando que nada menos que
51% da população acima de 25 anos
não completou a educação básica.
A área da saúde, por seu turno,
vem sendo afetada por crônico subfi-
nanciamento. O orçamento de 2019,
de R$ 127,8 bilhões em termos reais, é
semelhante ao de 2014, mas com 7
milhões a mais de pessoas para se-
rem atendidas.

O ACIRRAMENTO DO RACISMO
E MACHISMO ESTRUTURAIS
Os povos indígenas têm sido um dos
principais alvos do governo Bolsona-
ro. Ainda segundo o estudo do Inesc,
a Fundação Nacional do Índio (Funai)
perdeu 27% dos recursos correntes
entre 2012 e 2019. Também a Saúde
Indígena sofreu cortes: foram menos
5% no valor autorizado e 16% nos va-
lores pagos entre 2018 e 2019, além da
fragilização da participação social.
Outra terrível expressão do racis-
mo institucional é o massacre da ju-
ventude negra. Os dados mais recen-
tes do Atlas da Violência (Ipea e
Fórum Brasileiro de Segurança Públi-
ca) evidenciam que, em 2017, 36 mil
jovens negros foram assassinados,
um recorde nos últimos dez anos.
Apesar dessas inaceitáveis desigual-
dades, em 2019 o governo Bolsonaro
praticamente acabou com o Progra-
ma de Enfrentamento ao Racismo e
Promoção da Igualdade Racial – polí-
tica que já contou com recursos da or-
dem de R$ 80 milhões em 2014 e, no
ano passado, gastou apenas R$ 15 mi-
lhões, cinco vezes menos.
Ignorando um aumento de 7,3%
no número de casos de feminicídio
em comparação com 2018, o governo
Bolsonaro não gastou nenhum recur-
so em 2019 para a construção das Ca-
sas da Mulher Brasileira, que atendem
mulheres em situação de violência –
considerando que havia R$ 20 mi-
lhões disponíveis para essa atividade.
Crianças e adolescentes também
não são poupados da sanha destrui-

O que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com
um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas
sociais que não encontram no aparato público estrutura e financiamento adequados
para serem atendidas

ESCRITO PELA EQUIPE DO INESC*

© Giorgia Massetani

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