Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 157 (2020-08)

(Antfer) #1

AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5


dora do governo Bolsonaro. Como
mostrou o estudo do Inesc, em 2019
os gastos do Programa de Promoção,
Proteção e Defesa dos Direitos Hu-
manos da Criança e do Adolescente
caíram 27% em termos reais em com-
paração com o ano anterior.


O DESMONTE DA ÁREA AMBIENTAL
Na área ambiental, o desmonte da
política foi ganhando contornos mais
explícitos com o governo Bolsonaro.
Foram dezenas de medidas, em sua
maioria de cunho infralegal, por
meio de portarias, decretos e instru-
ções normativas, as quais resultaram
na redução das ações de fiscalização
do desmatamento na Amazônia, en-
tre outras. Esse desmonte das estru-
turas institucionais foi acompanha-
do de mudanças no quadro de
pessoal, com nomeações, em todos
os escalões, de militares. A militari-
zação da política ambiental, sobretu-
do da Amazônia, é um fenômeno que
caracteriza o atual governo.


OS IMPACTOS DA PANDEMIA
DE COVID-19 E O DESCASO DO
GOVERNO BOLSONARO
É nesse cenário desolador que a Co-
vid-19 chega ao Brasil. Além das con-
sequências dramáticas da crise sani-
tária, temos um governo que trata
com descaso e despreparo a pande-
mia e os efeitos da recessão
econômica.
Ainda que, por um lado, as políti-
cas de manutenção de renda (Auxílio
Emergencial) e de emprego (finan-
ciamento da folha salarial e Progra-
ma de Manutenção de Emprego e
Renda) sejam anunciadas como prio-
ritárias, seu baixo nível de gastos
após mais de quatro meses de pande-
mia é assustador. A execução orça-
mentária da renda básica e o finan-
ciamento da folha salarial atingiram
somente metade de seu potencial, e o
Programa de Manutenção de Empre-
go e Renda, apenas 30%.
Os impactos da crise se fazem sen-
tir no mundo do trabalho. Segundo
dados recentes publicados pelo De-
partamento Intersindical de Estatísti-
ca e Estudos Socioeconômicos (Diee-
se),^4 em maio, 18,5 milhões de
brasileiros não trabalharam e não pro-
curaram ocupação por causa da pan-
demia; 19 milhões de pessoas foram
afastadas do trabalho e 30 milhões ti-
veram alguma redução em seus rendi-
mentos. Note-se, contudo, ainda de
acordo com o órgão de pesquisa, que o
auxílio emergencial tem sido essencial
para cobrir boa parte da perda de ren-
dimento dos beneficiários.


O DESMANDO FEDERAL
SAÚDE E NA EDUCAÇÃO
O quadro na área da saúde é dramáti-
co, com quase 90 mil óbitos e 10% da


pessoas que está em risco. Isso por-
que a pandemia trouxe novas de-
mandas, que se somam às preexis-
tentes. Assim, faz-se necessário
injetar vultosos recursos nas políti-
cas públicas para proteger a saúde, a
educação e a renda, mas também pa-
ra dinamizar a economia e pavimen-
tar o caminho para a retomada do
crescimento. Deve-se aproveitar a
oportunidade para fortalecer medi-
das de preservação do meio ambiente
e de enfrentamento da crise climáti-
ca para que a almejada saída da crise
seja de fato sustentável. A sustentabi-
lidade, contudo, somente será garan-
tida com políticas de promoção da
equidade de raça/etnia e de gênero e
com o pleno gozo dos direitos de
crianças, adolescentes e jovens.
Assim, de imediato, urge estender
o estado de calamidade para 2021 e
revogar medidas de contenção de
despesas como o teto de gastos e a
meta para o resultado primário. Sem
essas revogações não haverá retoma-
da possível. É indispensável aprovar
uma reforma tributária que vá muito
além da simplificação de impostos e
que consolide um sistema efetiva-
mente progressivo, no qual os mais
ricos, que hoje pouco contribuem,
possam de fato participar do desen-
volvimento do país.
Por fim, a defesa de uma gover-
nança global democrática e participa-
tiva é mais do que nunca necessária,
não somente para assegurar o acesso
universal a vacinas e remédios contra
a Covid-19, mas também para evitar
novas pandemias e construir um pla-
neta mais justo e sustentável.

*A equipe do Instituto de Estudos Socioe-
conômicos (Inesc) é composta por Ales-
sandra Cardoso, Carmela Zigoni, Cleo
Manhas, Dyarley Viana, Leila Saraiva,
Livi Gerbase, Luiza Pinheiro, Márcia
Acioli, Marcus Dantas, Nathalie Beghin,
Tatiana Oliveira e Thallita de Oliveira.

1 IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Do-
micílios Contínua. Divulgação Especial. Medi-
das de Subutilização da Força de Trabalho no
Brasil, 4º trimestre de 2019.
2 FAO, “The state of food security and nutrition in
the world 2020. Transforming food systems for
affordable health diets” [A situação da segu-
rança alimentar e da nutrição no mundo 2020.
Transformando sistemas alimentares para die-
tas saudáveis acessíveis], Roma, 2020.
3 IBGE, Pnad Contínua 2019.
4 Dieese, Boletim Emprego em Pauta n.15, 20
jul. 2015.
5 Carlos Madeiro, “Covid mata 55% dos negros
e 38% dos brancos internados no país”, UOL,
2 jun. 2020.
6 Dados do Comitê Nacional de Vida e Memória
Indígena.
7 Dados coletados pelo Inesc em 14 de julho de
2020, no portal Siga Brasil.
8 UOL, “Número de casos de feminicídio no
Brasil cresce 22% durante a pandemia”, 1º
jun. 2020.
9 Dados atualizados em 21 de julho com base
em informações do Siga Brasil, corrigidos
pelo IPCA.
10 Inesc, “Brasil com Baixa Imunidade – Balanço
do Orçamento Geral da União 2019”.

população com casos confirmados
da nova doença. O Brasil se tornou,
em meados de junho, o segundo país
do mundo com maior número de óbi-
tos por Covid-19, somente atrás dos
Estados Unidos. A responsabilidade
do governo federal nas mortes decor-
rentes do novo coronavírus é eviden-
te e pública. O presidente culpabiliza
estados e municípios pela crise eco-
nômica, desdenha do isolamento so-
cial e propagandeia a utilização de
medicamentos sem comprovação
científica. Esse comportamento se
ref lete no Ministério da Saúde, que
deveria ser o grande coordenador do
enfrentamento à pandemia, mas que
até hoje não executou nem metade
dos recursos que recebeu exclusiva-
mente para isso, da ordem de R$ 39,
bilhões. Ademais, dois ministros fo-
ram demitidos e substituídos por mi-
litares sem especialização na área. A
situação só não é pior porque o país
possui o Sistema Único de Saúde
(SUS), gratuito e universal, que, a
despeito do descaso do governo fede-
ral, conta com a atuação dos estados
e municípios.
No caso da educação, pode-se di-
zer que as desigualdades ficaram
ainda mais escancaradas. Olhando
apenas para a escola pública, há falta
de preparo de educadores para lidar
com esse momento e de acesso à in-
ternet ou a equipamentos adequados
para que os educandos acompanhem
aulas a distância. Também grave é a
situação de mães e pais que precisam
trabalhar em meio à pandemia, não
tendo condições de acompanhar
seus filhos, seja por falta de tempo,
seja por falta de escolaridade.

OS PRINCIPAIS ALVOS SÃO NEGROS,
QUILOMBOLAS E INDÍGENAS
Os efeitos da pandemia contribuem
ainda para reforçar desigualdades de
raça e de etnia. A população negra é
proporcionalmente muito mais afe-
tada que a branca: 55% de pessoas
negras que se internaram em hospi-
tais do Brasil com Covid-19 morre-
ram; entre os brancos, esse percen-
tual foi de 38%.^5
No tocante à população indígena,
mesmo diante da disseminação do
novo coronavírus, que já matou mais
de quinhentos e infectou outros 16
mil indígenas,^6 o governo federal in-
vestiu menos recursos em Saúde In-
dígena no primeiro semestre deste
ano do que no mesmo período do ano
passado. Além disso, os recursos ex-
traordinários para enfrentamento da
Covid-19 alocados na Funai tiveram
execução orçamentária de apenas
33%.^7 A população quilombola, que
não conta nem mesmo com um siste-
ma de saúde que atenda a suas espe-
cificidades culturais, ficou desassis-
tida com os cortes na política de

cestas básicas e a dificuldade de
acesso ao auxílio emergencial.
Não satisfeito, o governo selou as
políticas de morte para indígenas,
quilombolas e povos e comunidades
tradicionais vetando 22 itens do PL n.
1.142, que previa a criação de um pla-
no de enfrentamento da Covid-19 en-
tre esses povos.

O AUMENTO DA VIOLÊNCIA
CONTRA MULHERES E CRIANÇAS
Em decorrência das medidas de iso-
lamento social e do consequente
confinamento das famílias em casa,
a violência contra as mulheres se in-
tensificou na pandemia. Dados le-
vantados pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública apontam que
houve aumento de 22% nos registros
de casos de feminicídio no Brasil du-
rante a pandemia.^8
Diante desse quadro, a ministra
Damares Alves pouco fez. Seu minis-
tério foi agraciado com recursos da
ordem de R$ 574 milhões, incluindo
as verbas destinadas ao enfrenta-
mento do novo coronavírus, mas exe-
cutou apenas 11% até agora. Do re-
curso específico para enfrentamento
da violência contra as mulheres – cer-
ca de R$ 25 milhões –, apenas R$ 1,
milhão foram gastos.^9
O confinamento também contri-
bui para aumentar a violência contra
crianças, pois as coloca mais tempo
na presença do adulto que pode ser
seu agressor. Desde 2019 não houve
execução orçamentária alguma para
as ações de Enfrentamento às Violên-
cias contra Crianças e Adolescentes,
e, no orçamento atual, essa estratégia
nem aparece nas rubricas, como mos-
tramos em estudo recente do Inesc.^10

O NECESSÁRIO PAPEL DO ESTADO
A contenção da pandemia e o enfren-
tamento da decorrente crise econômi-
ca requerem o fortalecimento do pa-
pel do Estado. Requerem ainda uma
atuação coordenada dos poderes pú-
blicos a ser liderada por um governo
federal defensor da agenda de direitos
humanos e contando com a participa-
ção de sindicatos de trabalhadores e
de organizações e movimentos so-
ciais, de modo a levar em conta as vo-
zes e demandas dos mais afetados pe-
la combinação das múltiplas crises.
A recessão econômica que se ins-
talou é de proporções dramáticas e
demanda respostas ousadas e res-
ponsáveis, pois é a vida de milhões de

Os efeitos da pandemia
contribuem ainda para
reforçar desigualdades
de raça e de etnia
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