AGOSTO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9
tar a capacidade de resposta do siste-
ma público de saúde à pandemia.
Nesse sentido, é imprescindível que o
piso orçamentário emergencial apro-
vado para o SUS seja incorporado ao
orçamento de 2021.
Apesar de subfinanciado e amea-
çado pela agenda neoliberal, o SUS
tem, sem dúvida, produzido respos-
tas efetivas no combate à Covid-19.
Em todos os níveis de atenção, gesto-
res e profissionais de saúde vêm lu-
tando arduamente para garantir
acesso e qualidade dos cuidados de
saúde. Não obstante, até agora, a
maior parte das ações de combate à
pandemia tem se concentrado nos
níveis secundário e terciário de aten-
ção à saúde do SUS. A atenção primá-
ria à saúde, que corresponde à porta
de entrada no sistema, é fundamen-
tal para o controle da pandemia. Ex-
periências bem-sucedidas em alguns
municípios brasileiros confirmam a
importância desse nível de atenção
para maior cobertura e cuidado efeti-
vo dos pacientes com Covid-19. Essas
boas práticas precisam ser ampliadas
para toda a rede do SUS, em todo o
território nacional, com urgência!
Mesmo nos níveis secundário e
terciário de atenção, há muito o que
implantar, ajustar e melhorar na rede
assistencial do SUS. Problemas de
continuidade e integração do cuida-
do, com pacientes deixando de rece-
ber o atendimento indicado no mo-
mento oportuno, ocasionam
aumento evitável no número de pa-
cientes graves. Muitos casos acabam
evoluindo para óbito por falta de
atendimento hospitalar de qualida-
de. O acesso regulado à atenção espe-
cializada precisa ser colocado em
prática imediatamente, em todo o
país, garantindo transporte adequa-
do, oportuno e seguro aos usuários
que dele necessitem. O manejo clíni-
co de pacientes deve seguir protoco-
los elaborados por especialistas,
adaptados às condições locais e inte-
grados às redes de atenção à saúde.
Tanto para a Covid-19 como para ou-
tros problemas de saúde, serviços de
apoio diagnóstico e terapêutico pre-
cisam ser expandidos e agilizados.
Em todo o país, leitos de retaguar-
da devem ser reservados para casos
confirmados de Covid-19 que apre-
sentem comorbidades, mesmo que
não sejam graves. Isso inclui pessoas
que residem sozinhas ou que vivem
em contextos nos quais isolamento e
distanciamento físico são impossí-
veis. Toda a capacidade hospitalar
instalada (englobando serviços pú-
blicos e privados) deve obedecer a
uma fila única para cuidados intensi-
vos de casos graves. Além disso, o
planejamento e a organização de cui-
dados hospitalares e domiciliares de
reabilitação, que podem ser de longa
duração, já deveriam estar em curso.
Cabe às autoridades sanitárias
garantir o acesso a medicamentos e
promover seu uso racional. Diante da
profusão de promessas de tratamen-
tos milagrosos, prescrevem-se medi-
camentos sem eficácia comprovada,
enquanto faltam anti-inf lamatórios,
sedativos e antibióticos necessários
para atendimento a pacientes graves
de Covid-19. Não obstante as deman-
das e urgências da pandemia, gesto-
res do SUS devem evitar, por meio de
estoques estratégicos, que medica-
mentos essenciais faltem a pacientes
com outras enfermidades, o que tem
ocorrido em vários pontos da rede
assistencial.
Além disso, as autoridades sanitá-
rias são responsáveis por garantir a
observância de protocolos de segu-
rança, com a provisão de equipa-
mentos de proteção individual para
trabalhadores e trabalhadoras de
saúde e outros setores que atuam na
linha de frente na rede de serviços de
saúde. Infelizmente, nesse aspecto, o
Brasil atingiu mais um vergonhoso
recorde mundial, com altíssimo per-
centual de óbitos entre profissionais
de saúde, especialmente os da área
de enfermagem.
No plano técnico, apesar de a efe-
tividade na assistência médica ser
fundamental para reduzir sofrimen-
tos e salvar vidas, todas essas ações
assistenciais são insuficientes para o
controle da pandemia. No estágio em
que se encontra a pandemia no país,
medidas firmes e mais efetivas, nas
esferas econômica, política e sanitá-
ria, já deveriam ter sido tomadas.
Ações comunitárias de enfrentamen-
to à pandemia precisam ser fomenta-
das, em paralelo a iniciativas de pre-
venção e promoção da saúde,
especialmente entre as populações
mais vulnerabilizadas. Como efeti-
vamente ainda não o foram, além de
necessárias, são agora urgentes para
controlar a pandemia e seus impac-
tos negativos.
Na ausência de vacinas e trata-
mentos específicos para a Covid-19,
cabe o recurso a estratégias não far-
macológicas, como quarentenas e
medidas de distanciamento físico, na
amplitude necessária para cada ce-
nário epidemiológico e contexto de
cada região, estado, município ou lo-
calidade. Enquanto persistir a trans-
missão com característica epidêmi-
ca, autoridades sanitárias devem
manter as diretrizes de distancia-
mento físico, uso de máscaras, dispo-
nibilidade de álcool em gel em locais
públicos e transportes coletivos,
proibição de aglomerações de qual-
quer natureza não relacionadas à
manutenção de atividades essenciais
e restrição de viagens domésticas e
internacionais.
No caso brasileiro, a gestão dessas
medidas tem-se dado por iniciativa
de governadores e prefeitos, em mui-
tos casos como reação a pressões
econômicas locais, das quais se tor-
naram reféns. A f lexibilização das
medidas de quarentena, distancia-
mento físico e restrição de mobilida-
de deverá ser cogitada apenas onde e
quando a situação epidemiológica
permitir, com pré-requisitos precisa-
mente definidos, conforme indicado-
res estabelecidos pela OMS e referen-
dados por outras organizações
internacionais de saúde. Nesse senti-
do, para a tomada de decisões corre-
tas e prudentes, as autoridades de-
vem instalar comitês consultivos
com representação das comunidades
científicas, profissionais e da socie-
dade civil. Além disso, tal f lexibiliza-
ção deve ser autorizada somente se
for viabilizada uma efetiva capacida-
de de vigilância epidemiológica.
A vigilância epidemiológica é
uma das estratégias mais efetivas
para controlar epidemias virais co-
mo a da Covid-19. Isso implica proce-
dimentos de busca ativa de casos,
com equipes capacitadas para testa-
gem, por biologia molecular, de to-
dos os casos suspeitos, visando iden-
tificar infectantes e bloquear cadeias
de transmissão, até o limite da ras-
treabilidade, incluindo monitora-
mento dos que tiverem indicação de
isolamento. Tais procedimentos de-
vem ser conduzidos na atenção pri-
mária em saúde por equipes treina-
das, conectadas e coordenadas pelos
gestores do SUS, nos planos munici-
pais, estatuais e federal. Casos leves
ou assintomáticos devem ser identi-
ficados, orientados e rigorosamente
monitorados, a fim de verificar o
cumprimento estrito das instruções
de isolamento, em instalações prote-
gidas ou unidades de quarentena.
Em alguns casos, deve-se viabilizar
auxílio financeiro para isolamento
individual em regime domiciliar.
Ferramentas tecnológicas (como
aplicativos de celulares) poderão ser
utilizadas para localização, monito-
ramento e controle dos casos duran-
te o período infeccioso, respeitando
sigilo e confidencialidade.
UM SISTEMA ARTICULADO
E INTEGRADO
Um plano estratégico para controle
da pandemia não significa uma mera
lista de ações a serem realizadas nas
diferentes esferas de governo ou nos
distintos níveis de operação do SUS,
de modo isolado ou cumulativo. Tra-
ta-se, na verdade, de um sistema arti-
culado e integrado de estratégias, tá-
ticas e ações, destinadas a viabilizar
métodos de controle dos processos
epidêmicos, cuja funcionalidade e
efetividade dependem de planeja-
mento eficaz, gestão competente e
coordenação fina e sensível. A condi-
ção de viabilidade (ou sucesso) de
sua aplicação, num contexto de gran-
de complexidade, reside justamente
na capacidade de mobilização da po-
pulação, incluindo usuários, profis-
sionais e gestores num regime de
coesão firme e solidária.
Do ponto de vista científico, sabe-
mos tudo o que se precisa para con-
trolar a pandemia de Covid-19. Não
podemos desperdiçar mais tempo do
que já se perdeu, porque a demora
em dar respostas implica perda irre-
parável de vidas. Se as autoridades
continuarem negando a seriedade da
crise atual, tomando decisões sem
fundamento técnico, o terrível preço
da pandemia recairá sobre a maioria
da população brasileira, principal-
mente os estratos sociais mais vul-
neráveis. Uma pandemia como esta
aumenta a vulnerabilidade social,
aprofunda desigualdades econômi-
cas, gera iniquidades em saúde e vio-
lações de direitos humanos, o que
atinge diretamente grupos popula-
cionais oprimidos e discriminados e
afeta o conjunto da sociedade.
Reafirmamos que, com ação polí-
tica, planejamento, organização e
participação, é possível e viável su-
perar a pandemia no Brasil. Como
primeiro passo, o governo federal
precisa cumprir sua função primor-
dial de condutor das políticas de
controle da Covid-19 e redução de
danos. Os outros poderes da Repú-
blica e todas as esferas de governo
precisam atuar de modo coordenado
e efetivo, cumprindo suas responsa-
bilidades. A sociedade brasileira de-
ve se mobilizar politicamente para
enfrentar as crises da pandemia.
Trata-se de uma luta política urgente
e necessária pela democracia, com
base nos princípios de justiça social,
equidade e transparência, mediante
cooperação e entendimento entre os
setores progressistas.
*Naomar de Almeida Filho é professor
visitante (IEA-USP), professor de Epide-
miologia (ISC-UFBA) e vice-presidente da
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco); Gulnar Azevedo é professora
(Uerj) e presidente da Abrasco; Claudia
Travassos é pesquisadora da Fiocruz e
membro da diretoria do Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde (Cebes).
Com ação política,
planejamento, organiza-
ção e participação, é
possível e viável superar
a pandemia no Brasil