National Geographic - Portugal - Edição 233 (2020-08)

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12 NATIONALGEOGRAPHIC


Por fi m, quando a epidemia terminou, qua-
se seis mil pessoas (correspondendo a mais de
metade dos habitantes de Boston) tinham sido
afectadas pela varíola e 844 morreram. Em
contrapartida, só morreram 2% das pessoas
submetidas a variolização. Aperfeiçoamentos
entretanto desenvolvidos permitiram a redu-
ção dessa percentagem para menos de 0,5%,
transformando a variolização num método ins-
tituído. Quando a epidemia seguinte de varíola
atingiu Boston, em 1792, a reacção inverteu-se:
cerca de 9.200 habitantes foram inoculados e
apenas 232 padeceram da varíola natural.
Nenhum dos três homens responsáveis pela
introdução da varioli-
zação na América do
Norte conquistou fama
ou prestígio com isso.
Onésimo desapareceu
dos registos depois de
comprar a sua liberda-
de. Zabdiel Boylston
também foi pratica-
mente esquecido. As
ruas, edifícios e uma
aldeia vizinha chama-
da Boylston prestam,
de facto, homenagem
ao seu neto, um co-
merciante rico. Quanto
a Cotton Mather, não
conseguiu reconquis-
tar os corações da po-
pulação de Boston, mas continuou a refl ectir
sobre questões médicas, acabando por escre-
ver sobre a verdadeira causa de todas as epi-
demias: reunidas as condições favoráveis, há
organismos minúsculos, que só então come-
çavam a ser observados ao microscópio, “que
rapidamente se multiplicam de forma prodi-
giosa e talvez tenham uma quota de respon-
sabilidade maior do que se costuma imaginar
na origem de muitas das nossas doenças”. Este
manuscrito, noutros aspectos excêntrico, nun-
ca foi publicado. A comunidade científi ca de-
morou mais 150 anos a reconhecer o decisivo
papel desempenhado pelos micróbios como
agentes das doenças infecciosas.
O impulso dado à variolização na América
do Norte e na Europa originou outro efeito

Quando o surto começou a propagar-se,
Cotton Mather alertou os médicos de Boston
para a existência de uma “maravilhosa prática
ultimamente utilizada em várias partes do mun-
do” para o deter. A técnica consistia em perfu-
rar uma das pústulas já amadurecidas de um
doente com varíola para extrair o pus ou “ma-
téria variólica”. Uma porção deste material era
então introduzida numa incisão feita na pele de
uma pessoa saudável. A ideia da “variolização”,
ou inoculação, era gerar imunidade, através da
qual o indivíduo passaria, provavelmente, a ser
um caso meramente ligeiro de uma das doenças
mais letais do planeta.
Cotton Mather en-
controu testemunhos e
cicatrizes corroborado-
res deste método “num
número considerável”
de outros habitantes
de Boston nascidos em
África. Zabdiel Boyls-
ton conhecia o terror
da varíola, pois quase
sucumbira à doença
19 anos antes e sentia-
-se preocupado com a
possibilidade de o seu
consultório médico pôr
“diariamente em peri-
go de vida” os seus oito
fi lhos. No dia 26 de Ju-
nho, depois de refl ectir
sobre as provas, realizou as primeiras varioliza-
ções, no seu fi lho de 6 anos e em dois escravos
da família. O resultado foi uma “varíola benigna
e favorável”. Depois, começou então a inocular
os pacientes que procuravam protecção contra a
doença na sua variante mais grave.
A princípio, alguns habitantes da cidade con-
sideravam o tratamento tão aterrador como a
própria doença. Temiam que os pacientes va-
riolizados ainda não plenamente restabelecidos
fossem contagiosos. Os médicos opuseram-se
ao tratamento, pois este contrariava a ortodoxia
médica que defendera, durante dois mil anos,
que a doença resultava de um desequilíbrio de
quatro “humores” orgânicos, muitas vezes cau-
sado por maus odores e por “miasmas” mal defi -
nidos, ou maus ares.


Apartirde1721,a
varíolaensinouao
Ocidenteumalição:
ossereshumanos
conseguem
prevenirdoenças
pandémicas.
Conseguimos
confiná-lase,se
houvervontade,
porvezesatéas
erradicamos.

CAPÍTULO UM 1721 BOSTON Da inoculação à vacinação
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