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Num lugar chamado Seondha, uma fortaleza
desmorona-se ao lado de um meandro plácido
do rio Sindh. Os altos portões medievais parecem
eriçados, devido aos seus espigões de ferro com
30 centímetros de comprimento: são defesas con-
tra as investidas de elefantes de guerra. Um dos
últimos descendentes dos Bundela Rajputs que
construíram a fortaleza ainda vive num baluarte.
Junto das águas lentas e castanhas do rio Be-
twa, encontro mineiros extraindo a areia do
leito do rio com pás e escavadoras mecânicas.
A areia pode ser transportada por camiões até lo-
cais de construção tão distantes como Lucknow
e Nova Deli, a cerca de 500 quilómetros de dis-
tância. Muitas operações de extracção de areia
são ilegais. A areia é um bem lucrativo na Índia,
alimentando o surto de construção e o mercado
negro, ambos protegidos por bandidos, mesmo
que o saque destrua habitats aquáticos e pertur-
be a hidrologia. Um estudo das Nações Unidas
calcula que o crescente apetite da humanidade
pela humilde areia para construção representa o
dobro do volume dos sedimentos naturalmente
repostos pelo total dos rios mundiais.
As máfias da extracção de areia já mataram
agentes da lei que tentaram impedir o esventra-
mento dos rios da Índia. Já assassinaram jorna-
listas que expuseram a prática proibida de esca-
var as vias fluviais.
“Não pares de andar”, diz-me o meu mais
recente companheiro de caminhada, o con-
servacionista especializado em rios Siddharth
Agarwal, enquanto os mineiros nos gritam para
parar. Fazemo-nos de surdos. Descemos as mar-
gens do Betwa, chamamos um pescador que está
de passagem, atiramos as nossas mochilas para
o seu dinghy e remamos para a margem oposta.
Caminhamos na escuridão e concluímos um dia
de 40 quilómetros para chegar a uma aldeia onde
fogueiras, tambores e cânticos anunciam um fes-
tival hindu. Espantadas, as pessoas reunidas na
comemoração dão-nos as boas-vindas. Preparam
dal e roti. Esta hospitalidade reflexa é universal
ao longo do meu percurso pela Índia rural, um
território que acolhe peregrinos viajando a pé
desde a Idade do Bronze. Siddharth pergunta,
cautelosamente, sobre a extracção de areia.
Os aldeãos encolhem os ombros. “O que fazer?”
Mafiosos, políticos e compadres controlam a
vida. É verdade que, despido até ao seu leito ro-
choso, o Betwa provoca cheias mais erráticas do
que nunca. E sim, a imprevisibilidade das mon-
ções – devido às alterações climáticas – tornou a
agricultura mais marginal. As pessoas têm de es-
cavar milhares de pequenos charcos, alimentados
pela água das chuvas, para regarem os seus cam-
pos. O governo está a planear uma acção dramáti-
ca: desviar um rio inteiro, o Ken, para o canal do
Betwa e assim repor o seu fluxo diminuído.
“Interligações fluviais”, suspira Siddharth
Agarwal. “Falsas esperanças.”
A Índia reservou cerca de 1,7 mil milhões de
euros para implementar um polémico esquema
de interligação fluvial: um gigantesco programa
de transvase de águas que propõe enxertos de
30 grandes rios indianos numa extensão de ca-
nais de betão com cerca de 15 mil quilómetros
para aliviar a crise hidráulica. O entroncamen-
to do Ken no Betwa vai ser o estudo de caso. Os
engenheiros planeiam desviar o “excedente” dos
caudais provocados pelas monções do Ken e ca-
nalizá-los para o Betwa, “mais seco”. Serão ne-
cessárias várias represas e barragens, inundando
90 quilómetros quadrados de terra, para que esta
obra de engenharia funcione. Os ambientalistas
opuseram-se, travando uma batalha em tribunal.
“Onde está esse excedente de água?” pergunta
amargamente Raghu Chundawat, um destacado
conservacionista indiano, no vizinho Parque Na-
cional de Panna, santuário de tigres em perigo.
“O governo não partilha os seus dados. Acho que
nem eles sabem quais serão as repercussões.”
Conhece-se porém um efeito da transforma-
ção dos deuses ribeirinhos em canalizações: a
maior parte das terras submersas pelo projecto
Ken-Betwa situa-se na reserva dos tigres.
Paul Salopek rema num
troço do Ganges, junto
de Varanasi, a cidade
mais santa do
hinduísmo. Embora a
água escura transporte
as cinzas de cerca de 30
mil pessoas cujos corpos
são cremados todos os
anos, os crentes acham
que é suficientemente
pura para beber.