POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO (do pensamento único à consciência universal) Milton Santos

(mariadeathaydes) #1

“ideologia”, e impregnam, de volta, a ciência cada vez mais redutora e reduzida, mais distante da
busca da “verdade”. Desse conjunto de variáveis decorrem, também, outras condições da vida
contemporânea, fundadas na matematização da existência, carregando consigo uma crescente
sedução pelos números, um uso mágico das estatísticas.
É também a partir desse quadro que se pode interpretar a serialização de que falava J.-
P. Satre em Questions de méthode, Critique de la Raison dialectique, 1960. Em tais condições,
instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta ao canibalismo, a supressão da
solidariedade, acumulando dificuldades para um convívio social saudável e para o exercício da
democracia. Enquanto esta é reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada como
eleitoralismo, isto é, consumo de eleições, as “pesquisas” perfilam-se como um aferidor quantitativo
da opinião, da qual acaba por ser uma das formadoras, levando tudo isso ao empobrecimento do
debate de idéias e a própria morte da política. Na esfera da sociabilidade, levantam-se utilitarismos
como regra de vida mediante a exacerbação do consumo, dos narcisismos, do imediatismo, do
egoísmo, do abandono da solidariedade, com a implantação, galopante, de uma ética pragmática
individualista. É dessa forma que a sociedade e os indivíduos aceitam dar adeus à generosidade, à
solidariedade e a emoção com a entronização do reino do cálculo (a partir do cálculo econômico) e da
competitividade.
São, todas essas, condições para a difusão de um pensamento e de uma prática
totalitárias. Esses totalitarismos se dão na esfera do trabalho como, por exemplo, num mundo agrícola
modernizado onde os atores subalternizados convivem, como num exército, submetidos a uma
disciplina militar. O totalitarismo não é, porém, limitado à esfera do trabalho, escorrendo para a esfera
política e das relações interpessoais e invadindo o próprio mundo da pesquisa e do ensino
universitários, mediante um cerco às idéias cada vez menos dissimulado. Cabe-nos, mesmo, indagar
diante dessas novas realidades sobre a pertinência da presente utilização de concepções já
ultrapassadas de democracia, opinião pública, cidadania, conceitos que necessitam urgente revisão,
sobretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente definidas nem totalmente
exercitadas.
Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um novo discurso, capaz de desmitificar a
competitividade e o consumo e de atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos.


9. A violência estrutural e a perversidade sistêmica


Fala-se, hoje, muito em violência e é geralmente admitido que é quase um estado, uma
situação característica do nosso tempo. Todavia, dentre as violências de que se fala, a maior parte é
sobretudo formada de violências funcionais derivadas, enquanto a atenção é menos voltada para o
que preferimos chamar de violência estrutural, que está na base da produção das outras e constitui a
violência central original. Por isso, acabamos por apenas condenar as violências periféricas
particulares.
Ao nosso ver, a violência estrutural resulta da presença e das manifestações conjuntas,
nessa era da globalização, do dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro e da
potência em estado puro, cuja associação conduz à emergência de novos totalitarismos e permite
pensar que vivemos numa época de globalitarismo muito mais que de globalização. Paralelamente,
evoluímos de situações em que a perversidade se manifestava de forma isolada para uma situação na

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