Jornal do Brasil, 06.04.1997).
24.Papel dos pobres na produção do presente e do futuro
O exame do papel atual dos pobres na produção do presente e do futuro exige, em
primeiro lugar, distinguir entre pobreza e miséria. A miséria acaba por ser a privação total, com o
aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um
estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível.
Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles
descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta. Assim, eles enfrentam e buscam remédio
para suas dificuldades. Nessa condição de alerta permanente, não têm repouso intelectual. A
memória seria sua inimiga. A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa
consciência do novo que é, também, um motor do conhecimento.
A socialidade urbana pode escapar ao seus intérpretes, nas faculdades; ou aos seus
vigias, nas delegacias de polícia. Mas não aos atores ativos do drama, sobretudo quando, para
prosseguir vivendo, são obrigados a lutar todos os dias. Haverá quem descreva o quadro material
dessa batalha como se fosse um teatro, quando, por exemplo, se fala em estratégia de sobrevivência,
mas na realidade esse palco, junto com seus atores, constitui a própria vida concreta da maioria das
populações. A cidade, pronta a enfrentar seu tempo a partir do seu espaço, cria e recria uma cultura
com a cara do seu tempo e do seu espaço e de acordo ou em oposição aos “donos do tempo”, que
são também os donos do espaço.
É dessa forma que, na convivência com a necessidade e com o outro, se elabora uma
política, a política dos de baixo, constituída a partir das suas visões do mundo e dos lugares. Trata-se
de uma política de novo tipo, que nada tem a ver com a política institucional. Esta última se funda na
ideologia do crescimento, da globalização etc. e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das
empresas. A política dos pobres é baseada no cotidiano vivido por todos, pobres e não pobres, e é
alimentada pela simples necessidade de continuar existindo. Nos lugares, uma e outra se encontram
e confundem, daí a presença simultânea de comportamentos contraditórios, alimentados pela
ideologia do consumo. Este, ao serviço das forças socioeconômicas hegemônicas, também se
entranha na vida os pobres, suscitando neles expectativas e desejos que não podem contentar.
Num mundo tão complexo, pode escapar aos pobres o entendimento sistêmico do
sistema do mundo. Este lhes aparece nebuloso, constituído por causas próximas e remotas, por
motivações concretas e abstratas, pela confusão entre os discursos e as situações, entre a explicação
das coisas e a sua propaganda.
Mas há também a desilusão das demandas não satisfeitas, o exemplo do vizinho que
prospera, o cotidiano contraditório. Talvez por aí chegue o despertar. Num primeiro momento, este é,
apenas, o encontro de uns poucos fragmentos, de algumas peças do puzzle, mas também a
dificuldade para entrar no labirinto: falta-lhes o próprio sistema do mundo, do país e do lugar. Mas a
semente do entendimento já está plantada e o passo seguinte é o seu florescimento em atitudes de
inconformidade e, talvez, rebeldia.
Sem dúvida, os brotes individuais de insatisfação podem não formar uma corrente. Mas
os movimentos de massa nem sempre resultam de discursos claros e bem articulados, nem sempre
se dão por meio de organizações conseqüentes e estruturadas. O entendimento sistemático das