com a rotina da falta e da satisfação. Na realidade, para essa parcela da sociedade a falta já é criada
como a expectativa e a perspectiva de satisfação. As negociações para regressar ao status de
consumidor satisfeito conduzem à repetição de experiências exitosas. Desse modo, a parcela de
consumidores contumazes obtém uma convivência relativamente pacífica com a escassez. Mas a
busca permanente de bens finitos e por isso condenados ao esgotamento (e à substituição por outros
bens finitos) condena os aparentemente vitoriosos à aceitação da contrafinalidade contida nas coisas
e em conseqüência ao enfraquecimento da individualidade.
Quanto aos “não-possuidores” sua convivência com a escassez é conflituosa e até pode
ser guerreira. Para eles, viver na esfera do consumo é como querer subir uma escada rolante no
sentido da descida. Cada dia acaba oferecendo uma nova experiência da escassez. Por isso não há
lugar para o repouso e a própria vida acaba por ser um verdadeiro campo de batalha. Na briga
cotidiana pela sobrevivência, não há negociação possível para eles, e, individualmente, não há força
de negociação. A sobrevivência só é assegurada porque as experiências imperativamente se
renovam. E como a surpresa se dá como rotina, a riqueza dos “não-possuidores” é a prontidão dos
sentidos. É com essa força que eles se eximem da contrafinalidade e ao lado da busca de bens
materiais finitos cultivam a procura de bens infinitos como a solidariedade e a liberdade: estes, quanto
mais se distribuem, mais aumentam.
Da escassez ao entendimento
A experiência da escassez é a ponte entre o cotidiano vivido e o mundo. Por isso,
constitui um instrumento primordial na percepção da situação de cada um e uma possibilidade de
conhecimento e de tomada de consciência.
O nosso tempo consagra a multiplicação das fontes de escassez, seja pelo número
avassalador dos objetos presentes no mercado, seja pelo chamado incessante ao consumo. Cada
dia, nessa época de globalização, apresenta-se um objeto novo, que nos é mostrado para provocar o
apetite. A noção de escassez se materializa, se aguça e se reaprende cotidianamente, assim como, já
agora, a certeza de que cada dia é dia de uma nova escassez. A sociedade atual vai dessa maneira,
mediante o mercado e a publicidade, criando desejos insatisfeitos, mais também reclamando
explicações. Dir-se-ia que tal movimento se repete, enriquecendo o movimento intelectual.
A escassez de um pode se parecer à escassez do outro e a escassez de hoje à escassez de ontem,
mas quando não é satisfeita ela acaba por se impor como diferente da de ontem e da do outro.
Alteridade e individualidade se reforçam com a renovação da novidade. Quanto mais diferentes são
os que convivem num espaço limitado, mais idéias do mundo aí estarão para ser levantadas,
cotejadas e, desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se
estabelece. Nesse sentido, pode-se dizer que a cidade é um lugar privilegiado para essa revelação e
que, nessa fase da globalização, a aceleração contemporânea é também aceleração na produção da
escassez e na descoberta da sua realidade, já que, multiplicando e apressando os contatos, exibe a
multiplicidade de formas de escassez contemporânea, as quais vão mudando mais rapidamente para
se tornarem mais numerosas e mais diversas. Para os pobres, a escassez é um dado permanente da
existência, mas como sua presença na vida de todos os dias é o resultado de uma metamorfose
também permanente, o trabalho acaba por ser, para eles, o lugar de uma descoberta cotidiana e de
um combate cotidiano, mas também uma ponte entre a necessidade e o entendimento (M. Santos,