IV DEMOCRACIA DE MERCADO NUMA ORDEM NEOLIBERAL
DOUTRINA E REALIDADE
Pediram-me para falar sobre aspectos da liberdade acadêmica e humana, convite que oferece
muitas opções. Vou me limitar às mais simples dentre elas.
Liberdade sem oportunidades é um presente diabólico, e a negação dessas oportunidades, um
crime. A sorte dos mais vulneráveis nos dá uma clara medida da distância que separa o ponto onde
nos encontramos de algo que pudéssemos chamar de “civilização”. Durante a minha fala, mil
crianças morrerão de doenças facilmente preveníveis, e quase duas mil mulheres morrerão ou
ficarão seriamente incapacitadas na gravidez ou no parto por falta de cuidados e medicamentos
básicos.^30 A UNICEF estima que, para superar essa tragédia e assegurar o acesso de todos aos
serviços sociais básicos, seria necessário nada mais que a quarta parte dos gastos militares anuais
dos países “em desenvolvimento”, cerca de 10 por cento dos gastos militares norte-americanos. É
sobre o pano de fundo dessa realidade que qualquer discussão séria sobre a liberdade humana deve
ser levada a cabo.
Proclama-se aos quatro ventos que a cura para tão profundos males sociais está quase ao
nosso alcance. Essa esperança não deixa de ter fundamento. Os últimos anos testemunharam a
queda de tiranias brutais, o desenvolvimento de conhecimentos científicos que nos abrem grandes
perspectivas e muitas outras razões para anteciparmos um futuro brilhante. O discurso dos
privilegiados é marcado pela confiança e pelo triunfalismo: o caminho à frente é conhecido e não há
outro. O tema básico, articulado com força e clareza, é o de que “a vitória norte-americana na
guerra fria foi à vitória de um conjunto de princípios políticos e econômicos: a democracia e o livre
mercado”. Esses princípios são “a onda do futuro – um futuro do qual os Estados Unidos são, ao
mesmo tempo, os guardiões e o modelo”. Estou citando o mais importante comentarista político do
New York Times, mas o quadro é trivial, repetido exaustivamente em quase todo o mundo e
geralmente aceito como preciso até mesmo pelos seus críticos. Ele foi também enunciado como a
“Doutrina Clinton”, que declarou que a nossa nova missão era a de “consolidar a vitória da
democracia e dos mercados abertos” que vinha de ser conquistada.
Resta, porém, um espectro de desacordos: num extremo, “idealistas wilsonianos” pedem
dedicação contínua à missão beneficente tradicional e, no outro, “realistas” rebatem dizendo que
talvez não tenhamos os meios necessários para conduzir tais cruzadas de “meliorismo global” e que
não deveríamos relegar os nossos próprios interesses em favor dos outros. Em algum lugar desse
espectro estaria o caminho para um mundo melhor.^31
A mim, a realidade parece bem diferente. O atual leque de políticas públicas em discussão
tem tão pouca relevância programática quanto seus numerosos antecedentes: nem os Estados
Unidos nem qualquer outro poder orientaram-se pelo “meliorismo global”. A democracia está sendo
atacada no mundo inteiro, até mesmo nos principais países industrializados; pelo menos a
democracia no sentido significativo da palavra, que supõe oportunidades para as pessoas tratarem
de seus próprios assuntos coletivos e individuais. Algo similar vale para os mercados. Os ataques à
democracia e aos mercados estão profundamente relacionados. Suas raízes estão fincadas no poder