A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
Preços sem valores / 107

elimina o fato de que muitos dos insumos básicos de valor de uso no processo de
produção da indústria do turismo sejam bens gratuitos (por exemplo, praias enso­
laradas ou patrimônio cultural) que podem adquirir um preço monetário, embora
não tenham propriamente valor (a não ser que tenham sido produzidos recente­
mente, no contexto da invenção da história, da tradição e da cultura, à maneira
da Disney). Se artefatos históricos e culturais adquirem de fato um preço prévio,
isso geralmente ocorre na forma de uma renda monopólica16. Eles somente conti­
nuarão a ser bens gratuitos se permanecerem comuns, não cercados e não sujeitos
à apropriação como propriedade privada. O cercamento permite a apropriação
prévia da renda pelos proprietários antes de liberar o acesso aos bens da história,
cultura e natureza, que, caso contrário, seriam gratuitos. Passamos por isso sempre
que temos de pagar ingresso para visitar uma catedral ou um monumento antigo.
Embora possa ser justificada pelos custos de manutenção e acesso, essa taxa pode
ser muito mais alta, fornecendo assim uma base para a extração de renda monopó­
lica para o proprietário. Em todos esses setores, há disputas ativas e interessantes
em torno da definição do que pode permanecer comum e do que pode ser cercado
para assegurar a extração de rendas monopólicas.
O tratamento do saber incorporado na produção não é substancialmente di­
ferente daquele da apropriação da história, da cultura e da fantasia pela indústria
do turismo. Ciência e inovação tecnológica podem, como reconheceu Marx, virar
um negócio por direito próprio, organizado de maneira capitalista, ainda que o co­
nhecimento científico e tecnológico, assim como a história, a cultura e a terra, seja
em si mesmo parte dos comuns globais, que em princípio deveriam ser recursos
livres e gratuitos. Na prática, porém, exige-se um preço pelo acesso a boa parte das
patentes, licenças, direitos de propriedade intelectual e afins.
A diferença entre subsunção formal e subsunção real do trabalho sob o capital é
importante aqui17. A intenção de Marx ao introduzir essa distinção era assinalar a
transição entre processos de trabalho que permaneciam sob o controle do trabalha­
dor e processos de trabalho designados e controlados pelo capital. O capitalismo no
chamado “período manufatureiro” valeu-se em geral de habilidades artesanais tra­
dicionais, reunindo-as, por meio de cooperação e divisão de trabalho, em um pro­
cesso de produção (como a construção de uma carruagem). Nesse tipo de sistema,
a principal fonte de mais-valor é o mais-valor absoluto — ou seja, o prolongamento
do tempo de trabalho muito além do tempo de trabalho socialmente necessário para


16 David Harvey, “The Art of Rent”, em Rebel Cines: From the Right to the City to the Urban Revolu-
tion (Londres, Verso, 2012 ) [ed. bras.: Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, trad.
Jeferson Camargo, São Paulo, Martins Fontes, 2014].
17 Karl Marx, “The Results of the Immediate Process of Production”, cit., p. 1.019-49.
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