118 / A loucura da razão econômica
nas concepções espirituais populares quanto uma revolução institucional e tecnoló
gica6. A mudança revolucionária consciente, por outro lado, implica uma redefini
ção e um redirecionamento de movimentos existentes em todos os momentos. As
pessoas podem até mudar suas concepções espirituais, mas isso não significa nada,
se elas não estiverem dispostas a mudar suas relações sociais, sua vida cotidiana,
sua relação com a natureza, seu modo de produção e suas estruturas institucionais.
Mas, se é verdade que as formas organizacionais e as modalidades de operação
são tão importantes quanto o hardware e o software e se a incorporação das relações
sociais, do conhecimento, das habilidades e mentalités em forma de hardware é
inelutável, então toda a questão do significado e do impacto da tecnologia na vida
social e em nossa relação com a natureza, bem como em nossas relações sociais,
torna-se muito mais complexa e difusa. Essa é, em meu entender, a grande impor
tância do comentário de Marx numa nota de rodapé importante do capítulo 13 do
Livro I. No entanto, eliminar as certezas que vêm associadas a um reducionismo
estreito (tecnológico, no sentido estrito de hardware, neste caso) tem a desvanta
gem do confronto com um mundo em que tudo está relacionado com tudo. Daí
o anseio, ao qual devemos resistir, de designar um primeiro motor. Daí também a
tendência a fetichizar a mudança tecnológica, não apenas como primeiro motor,
mas também como resposta a todos os males.
Na medida em que tudo isso configura uma visão da obra de Marx um tanto
diferente daquela que costuma ser propagada tanto por marxistas quanto por críti
cos de Marx, devo fornecer brevemente a evidência que a sustenta. Essa evidência
é mais bem representada pela estrutura e pelo argumento do Livro I d’O capital.
O capital não poderia ter surgido sem que certas condições preexistentes já esti
vessem estabelecidas. A troca mercantil, um sistema monetário apropriado, um
mercado de trabalho em funcionamento, arranjos institucionais mínimos (como o
indivíduo jurídico, as leis e a propriedade privada) e um mercado de consumo para
absorver as mercadorias produzidas, todos esses elementos eram requisitos míni
mos (ver Figura 2, p. 20). Também um certo nível de produtividade e qualificação
do trabalhador, bem como a disponibilidade de certos meios de produção básicos
(como terra, ferramentas e outros instrumentos de trabalho, além de infraestrutura
física, como transporte). Marx reconheceu que a produtividade inicial do trabalho
dependia também de condições naturais (fertilidade e dádivas gratuitas da nature
za, tais como cachoeiras, recursos minerais, processos biológicos de crescimento e
reprodução de plantas e animais etc.), assim como de histórias e conquistas cultu
rais (acumulação de habilidades, conhecimentos, concepções espirituais, relações
6 David Harvey, O neoliberalismo: história e implicações (trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela
Gonçalves, São Paulo, Loyola, 2005).