A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1

70 / A loucura da razão econômica


A ironia é que a necessidade de encontrar uma representação material física para
valores sociais levou à adoção de uma base metálica incontestável (ouro e prata) para o
dinheiro que era tão disfuncional para o uso diário que exigiu representações simbó­
licas de si (papel-moeda e dinheiro eletrônico) para ser efetiva. O dinheiro simbólico
se tornou gradualmente dominante à medida que o comércio se expandia. O corte
do lastro do dinheiro com sua base metálica no início dos anos 1970 produziu dois
sistemas simbólicos - valor e dinheiro em um estranho abraço dialético*.
Parte da estranheza decorre daquilo que Marx denomina uma “incongruência
quantitativa entre preço e grandeza de valor”, que “reside [...] na própria forma-
-preço”. Os preços propostos e realizados no mercado (independentemente de
serem estabelecidos em ouro, moedas fiduciárias ou mesmo tempo de trabalho)
podem flutuar, mas é exatamente isso o “que faz dela a forma adequada a um modo
de produção em que a regra só se pode impor como a lei média do desregramento
que se aplica cegamente”32. Somente assim oferta e demanda podem entrar em
equilíbrio e é o preço resultante desse equilíbrio que chega mais perto do valor.
Mais inquietante ainda é o fato de que:


[a form a-dinheiro] pode abrigar um a contradição qualitativa, de modo que o preço
deixe absolutam ente de ser expressão de valor [...]. Assim, coisas que em si mesmas não
são m ercadorias, como a consciência, a honra etc. podem ser compradas de seus possui­
dores com dinheiro e, m ediante seu preço, assum ir a form a-m ercadoria, de modo que
um a coisa pode form alm ente ter um preço mesmo sem ter valor.33

Em alguns casos, esses preços, “como o preço do solo não cultivado, que não
tem valor porque nele nenhum trabalho humano está objetivado, pode[m] abrigar
uma relação efetiva de valor ou uma relação derivada desta última”34.
Aparentemente, isso é preocupante para a teoria do valor-trabalho, porque, como
se queixaram desde cedo os economistas neoclássicos, se acontece tanta coisa com o
preço fora da esfera do valor, então por que não analisar apenas os preços de mercado
e seus movimentos e ignorar completamente a questão do valor? A desvantagem desse
procedimento é evidente: se desconsiderarmos a relação dialética entre preços e valo­
res, não teremos ponto de apoio sobre o qual erguer uma crítica das representações

* O autor refere-se às medidas políticas e econômicas de 1971, conhecidas como “choque Nixon”,
em que os Estados Unidos interromperam a convertibilidade do dólar estadunidense em ouro,
efetivamente invalidando o sistema de Bretton Woods e inaugurando um regime de câmbio
flutuante. (N. T.)
32 Idem, O capital, Livro I, cit., p. 177.
33 Idem.
34 Idem.
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