A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
84 / A loucura da razão econômica

Da mesma maneira que Marx evoca a ideia de uma unidade contraditória entre
a produção e a realização do ponto de vista da acumulação contínua de capital,
há uma necessidade paralela de que os movimentos anticapitalistas reconheçam a
unidade contraditória entre as lutas em torno da produção e as lutas travadas em
torno da realização. Na superfície, a política da realização tem uma estrutura social
e uma forma organizacional muito diferente daquela da valorização. Por esse mo­
tivo, a esquerda as trata com frequência como duas lutas completamente separa­
das, dando prioridade às travadas em torno da valorização. No entanto, essas duas
modalidades de luta são subsumidas no interior da lógica e do dinamismo gerais
da circulação do capital como totalidade. Assim sendo, por que sua unidade con­
traditória não deveria ser reconhecida e abordada por movimentos anticapitalistas?
O estudo dessa unidade contraditória revela muito sobre as contradições que
surgirão em qualquer ordem pós-capitalista em que o trabalho social — o trabalho
que fazemos para os outros — seja uma característica fundamental. Qualquer socie­
dade anticapitalista terá de surgir do útero do capitalismo contemporâneo, a partir
daquele mundo em que, como diz Marx, tudo está “prenhe de seu oposto”13. Na
medida em que toda economia se reduz à economia de tempo14:


posteriorm ente à abolição do modo de produção capitalista, porém m antendo-se a
produção social, continuará a predom inar a determ inação do valor no sentido de que
a regulação do tem po de serviço e a distribuição do trabalho social entre os diferentes
grupos de produção — e, por últim o, a contabilidade relativa a isso — se tornarão m ais
essenciais do que nunca.15

Isso ocorrería, por exemplo, se trabalhadores associados, no comando de seus
próprios processos de trabalho e meios de produção, coordenassem suas capaci­
dades com as dos outros, satisfazendo suas vontades, necessidades e desejos com
a ajuda desses outros. Há uma perpétua disputa nos textos de Marx entre o que
o valor é e o que ele pode vir a ser em um mundo anticapitalista16. O objetivo,
parece-me, não é abolir o valor (embora haja quem prefira colocá-lo desse modo),
mas transformar seu conteúdo e significado. E, nessa disputa, o antivalor é cons­
tantemente invocado. Nesse sentido, o antivalor constitui o solo subterrâneo do
qual o anticapitalismo pode florescer, tanto na teoria quanto na prática.


13 Karl Marx, “The Civil War in France’, em Robert C. Tucker, lh e Marx-Engels Reader (2. ed., Nova
York, Norton, 1978), p. 636.
14 Idem, Grundrisse, cit., p. 119.
15 Idem, O capital, Livro III, cit. p. 914.
16 Ver George Henderson, Valué in Marx, cit.
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