A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
Antivalor: a teoria da desvalorização / 95

Comunas anarquistas, comunidades religiosas e ordens sociais indígenas consti­
tuem espaços heterotópicos nos interstícios do sistema capitalista, mas fora do do­
minio da lei do valor. Há sempre o perigo de que as atividades não produtivas de
valor ou sejam apropriadas pelo capital como base para a produção de valor (por
exemplo, apropriadas ou tomadas como uma dádiva da natureza humana) ou íun-
cionem como urna especie de estoque para a reprodução do exército industrial de
reserva, constituido por trabalhadores cada vez mais redundantes e descartáveis.
O capital cria espaços para políticas de oposição enquanto circula e se expande.
Mobilizando a força da arte, da ciência e da tecnologia, o capital, a despeito de si
próprio, cria uma oposição entre a regra do valor como tempo de trabalho social­
mente necessário e o tempo de trabalho disponível ou “tempo de não trabalho”.
A tendencia do capital “é sempre, por um lado, de criar tempo disponível, por outro
lado, de convertido em trabalho excedente. Quando tem muito êxito, o capital sofre
de superprodução e, então, o trabalho necessário é interrompido porque não há
trabalho excedente para ser valorizado pelo capital”34. A incapacidade de realizar va­
lor torna-se assim uma barreira insuperável.


Q uanto m ais se desenvolve essa contradição, tanto m ais se evidencia que o crescimen­
to das forças produtivas não pode ser confinado à apropriação do trabalho excedente
alheio, mas que a própria massa de trabalhadores tem de se apropriar do seu trabalho
excedente. Tendo-o feito [...], o desenvolvimento d a força produtiva social crescerá com
tanta rapidez que [...] cresce o tem po disponível de todos. Pois a verdadeira riqueza é a
força produtiva desenvolvida de todos os indivíduos. Nesse caso, o tempo de trabalho
não é m ais de form a algum a a m edida da riqueza, mas o tempo disponível.35

Os trabalhadores podem recuperar aquele senso imensurável de valor que
perderam no contrato de trabalho assalariado original (ficcional) com o capital
que os condenou a uma existência alienada, em que a valorização do capital é seu
destino singular.
Aqui nos deparamos com alguns paradoxos políticos interessantes. A preocu­
pação dos comentários críticos recentes é em grande parte com a incorporação do
conhecimento e da ciência, do trabalho doméstico não remunerado e das “dádivas
gratuitas da natureza” no cálculo do valor. Afinal, eles não são uma fonte de valor?


34 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 590. A respeito da questão do tempo em Marx, ver Daniel Ben-
saíd, Marx fo r our Times: Adventures and Misadventures o fa Critique (Londres, Verso, 2002) [ed.
bras.: Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica, trad. Luiz Cavalcanti de
M. Guerra, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999]; Stavros Tombazos, Time in Marx: The
Categories ofTim e in Marxs Capital (Chicago, Haymarket, 2014).
35 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 590-1.

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