28 A BOLA
Domingo
2 de agosto de 2020De canto
Das comparações
tilância dum bisturi. Quando rompe com
a rotineirice em que a equipa tropeça,
trabalhando como um operário para re-
cuperar a bola, funcionando como artis-
ta para com ela no pé (e na cabeça) a
descobrir num desequilíbrio ou numa
brecha a forma de transformar becos
sem saída em linhas de horizonte — pon-
do-lhe baliza mais perto, golo mais à mão.
Talvez seja ainda pior «exercício de ig-
norância futebolística» mas vou atrevo-
-me a dizê-lo, também: Bruno Fernan-
des é capaz de ser de momento o melhor
jogador português. Porque ser melhor
jogador não é marcar mais golos, é pôr à
Messi a equipa a jogar melhor (e mais
perto de os marcar) – e é, sobretudo,
não deixar de ter, na ponta das chuteiras,
no seu espírito e no caráter do seu jogo,
aqueles olhos que na estrofe do poema
do Mário Dionísio mais interessam: os
olhos que vêem para além do que se vê...Porque Bruno
Fernandes pode ser
de momento o melhor
jogador português...N
A altura em que isso se fazia em
quase fervor evangélico, a ideia
largou-a o Miguel Angel Lotina:
que comparar Ronaldo com Messi era
«exercício de ignorância futebolística» –
e era-o por uma simples razão:- ... não se saber que Messi é Messi
e todos os demais são futebolistas, uns
mais fantásticos que outros.
Não há muito, Valdano espalhou-o
por A BOLA (em poético olhar ao jogo): - Cada génio é exclusivo e pede as
suas próprias metáforas. Para Marado-
naa bola era como um instrumento mu-
sical, a que ele arrancava respostas ar-
tísticas. Para Messi, a bola é uma
ferramenta sem qualquer outra preten-
são além da eficácia. Nem o serrote do
carpinteiro nem a enxada do jardineiro, an-
tes os utensílios de ourives do joalheiro
para a perfeição milimétrica do seu jogo.
Claro, eu sei que alargar a compara-
ção a Bruno Fernandes pode ser ainda pior
«exercício de ignorância futebolística» –
mas vendo o que fez e vai fazendo no
Manchester United, atrevo-me a dizê-lo:
no Bruno há, cada vez mais, bocadinhos
de Messi: quando tem a soltar-se-lhe
dos pés (que dão ao jogo destinos me-
lhores) a precisão dum algoritmo e a acu-
Por
ANTÓNIO SIMÕESsegue individualmente. Pelo
menos desta maneira a consi-
dero.
Foi assim que falou o solidá-
rio Chefe, que era muito agarra-
do à população — tanto mais que
se tornara urgente acabar com
os protestos constantes que co-
meçavam a surgir depois de qual-
quer alteração da lei.
É que, de facto, havia sempre
um grupo de pessoas que se sen-
tia prejudicado.
Os legisladores tentaram en-
tão criar uma lei que não preju-
dicasse ninguém, nem uma pes-
soa; mas não conseguiram.
Mesmo quando faziam leis so-
bre as árvores ou o vento, a coi-
sa não resultava. Havia sempre
protestos. E protestos humanos.
Mas o Chefe insistia:
— Façam uma lei que não pre-
judique ninguém, nem uma pes-
soa, nem um velhinho, nem um
desgraçado. Já basta.
— Isso que nos pede não é uma
lei, Chefe, é um milagre — dis-
seram os auxiliares.
— E quem trata desse tipo es-Por
GONÇALO M. TAVARESINTERVALO - Mundo, Cultura e Jogo
Céu, Cave e Milagres
D. R.«Parecia-lhe importante que um desconhecedor absoluto de marcas pudesse distinguir um simples director geral de um ministro»OPINIÃO
Sendo eu um ser
humano, qualquer lei
aprovada que prejudique
um único homem, é uma
lei que me persegue
individualmenteluente de as bicicletas se desloca-
rem no espaço da cidade.
— Bicicletas: conhece alguma
tecnologia mais actual?
Deste modo, no parque de es-
tacionamento destinado a elemen-
tos do governo havia agora lugar
para: um automóvel, duas moto-
rizadas, quatro bicicletas, nove ca-
valos; e ainda espaço para mais de
vinte burros.
Como a boa norma do respei-
to hierárquico aconselha e, ape-
sar da diferença de velocidade
atingida nas rectas, os que vi-
nham de burro, por hábito, che-
gavam primeiro.Decisões
legais,
e outras
3
— Sendo eu um ser
humano, qualquer lei
aprovada que preju-
dique um único homem,
é uma lei que me per-pecial de leis? perguntou, de
imediato, o Chefe.
Caiu subitamente o silêncio na
sala.
Os Auxiliares estavam emba-
raçados, notava-se. Ninguém sa-
bia dar uma resposta concreta ao
Chefe.
Lá ao fundo, no meio do si-
lêncio e da imobilidade gerais,
um dos novos Auxiliares lá se
atreveu a levantar o braço.
— Diga, senhor Auxiliar aí do
fundo.
— Chefe, eu não conheço todo
o organigrama, mas se não há
nenhuma secção do governo res-
ponsável pelos milagres, propo-
nho que se crie uma.
— Excelente ideia, disse o
Chefe, entusiasmado.
No entanto, pelo seu rosto de
imediato se notou que a solução
encontrada lhe levantava novas e
profundas questões: haveria ainda,
na folha A4 do organigrama, es-
paço para mais um departamento?Método
1
É uma brincadeira de crian-
ças — disse o senhor Kraus.
Quando o político nos fala do
céu, e aponta o dedo para o
alto dizendo, vêem?, é aí,
nesse momento, que devemos
olhar atentamente para os objec-
tos que ele guarda na cave.
Parque de
estacionamento
2
Tendo em conta a existên-
cia de inúmeras pessoas
do povo, do clero, e até da
nobreza, que nada enten-
dem de motores ou de au-
tomóveis, o Chefe disse:
— Basta!
E depois de ganhar balanço
avançou com a seguinte declara-
ção:
— Basta!
— Isso significa...? — alguém
perguntou.
— Significa que já chega — es-
clareceu o Chefe.
— Basta, portanto?
— Exactamente.
É que não lhe parecia suficien-
te a velha tradição democrática de
oferecer carros de diferente qua-
lidade consoante a posição hierár-
quica do sujeito.
Parecia-lhe importante que,
à vista desarmada, mesmo um
desconhecedor absoluto de mar-
cas, qualidade de arranque e
motor, pudesse distinguir um
simples director geral de um mi-
nistro.
Foi por esta boa razão que recu-
perou o elogio ao modo não po-
Nota — Gonçalo M. Tavares opta por escrever as
suas crónicas na ortografia antigaHistórias do senhor Kraus nes-
te intervalo.