Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1028 (2020-08-21)

(Antfer) #1
Sexta-feira,21deagostode2020|Valor| 3

COLUNASOCIAL


O suspeito


Em três casosrecentes,


agentes da lei claramente


despreparadosagiram


contra a liberdade ou a


vida de alguémcombase


em impressõessubjetivas


e preconceituosas.Por


JosédeSouzaMartins


Nosúltimosdias,diferentes
manifestaçõesdeviolaçãodedireitose
deviolênciacontrabrasileiros
desprotegidos,emdiferenteslugares,
indicamqueaquioEstadobrasileiro
vemsetornando, cadavezmais,um
Estadomaisexcludentedoqueode
todasasexcludênciasquesão
correntementedenunciadas.Em
aparentementeinócuasaçõesdeseus
agentese,supostamente,masnem
sempre,atéemnomedaleivaise
expondooperfildeumEstado
autoritárioeanticidadãoporque
trataumgrandenúmerodepessoas
comodescartáveis.
Os casossão o de um jovemde 18
anos,Matheus,negro, que, numshop-
pingdo Rio, foi abordado por dois su-
jeitosbrancosque, verificou-se depois,
erampoliciais militares prestandoser-
viçosa uma empresaprivadade segu-
rança.Não estavam a serviçoda Polí-
cia Militar, mas a serviço do shopping.
Matheuséentregadoreganha
R$2milpormês.Foraaumarelojoaria
trocarorelógioquecompraraparadar
depresenteaopainoDiadosPais.Jána
loja,enquantoaguardavaseratendi-
do,foiabordadopelosdoissujeitos,
convidadoasairenaescadadeserviço
foiderrubado. Umdosagressoresesta-
vaarmado.Elesoacusavamdefurto.
NoSacomã,emSãoPaulo,Rogério,
de19anos,branco,trabalhadorregis-
trado,comemoravanaruadecasa,
comafamíliaeamigos,seuaniversário

eoDiadosPais.Pediuaumamigoa
motoemprestadaparadarumavolta
nobairro.FoiseguidopordoisPMs,de
moto,efilmadoparandoamotoe
caindoemseguida.Levaraum
tironascostas.
O secretário de Segurançaexplicou
em nota:“Tambémtemosque consi-
derara tensãopolicialnumapersegui-
ção de uma motocicletaque tudoin-
dicava que estariacomofrutode um
roubo”. Pessoa daquela idade,naquele
bairro, que “pa recia” não ter o direito
de estarnaquela moto, “pa recia” ar-
mado. Portanto, nestecaso, maisdo
que suspeito porque foi morto.
OterceirocasofoiodajuízadoPara-
náqueemitiuumasentençade
14anosdeprisãocontraumhomem
negro,combasenesteargumento:“So-
bresuacondutasocialnadasesabe.Se-
guramente,integrantedogrupocri-
minoso,emrazãodesuaraça...”.
Até aqui,comoagentes da lei, pes-
soas claramente despreparadas para
cumpriras supostas funções de que
estavam investidas. Pessoasque agem
contraa liberdade ou a vida de al-
guémcom base em impressõessubje-
tivas,preconceituosas.
Dois dos casosaparentemente são
de racismo. Mas a verdade é que não o
são apenas.Um deles,o de São Paulo,
explicitamentenão o é, mas sociologi-
camenteé. O que vem
sendodefinidocomoracismo, no Bra-
sil, tem peculiaridades sociais

que devemser levadasem conta
para definições corretas.
A“raça” éaquionomedeumsiste-
maconexodecriminalizações,próprio
deumasociedadeprofundamentein-
toleranteemrelaçãoatudoeatodos.
Nessesdoiscasos,deumnegroedeum
branco,amediaçãoincriminadoraéa
deestaremcomobjetosquenãote-
riamodireitodeter.Ouseja,amenta-
lidadedifundidapelasprópriaspolí-
ciasmilitaresnaformaçãodeseuspo-
liciaisaindaéamesmadotempoda
escravidão,emquehaviaobjetosde
brancoseobjetosdepretos.
Anovidade,aqui,équeessamentali-
dadeanômicaeanômalaacarretanãosó
acriminalizaçãodonegro,mastambém
apretificaçãodobrancoparacriminali-
zá-lo.Coisadeumamentalidadeemque
acorécordeinferioridadesocialantes
desercorderaça.Araçaéadjetiva.Oque
secompreende,numpaísemque,antes
daabolição,escravosestavamdistribuí-
dosporextensaescaladecordapele,
desdeapessoapropriamentenegraatéa
pessoasuficientementeclaraparapassar
porbranca,emborafosseescrava.
Hoje,quemquerqueostentediscre-
pânciasdeapresentaçãopessoalno
vestir,nocalçar,nopossuir,nosgestos,
osensocomumrepressivoeescravista,
quepersiste,imediatamenteremete
paraoimagináriodeumsistemaclas-
sificatóriodesereshumanosemqueo
crime,verdadeirooufalso,énegro.
Nessesentido,tecnicamente,a
maioriadopovobrasileiroésuspeita.
Nossanegritudeéadasuspeição,enão
adacordapele.Nela,mesmoobranco
desprovidodoconjuntodecompo-
nentesprópriosdabrancura,ésuspei-
todesernegro.
Dessemodo, os dois jovensvitima-
dos pela violência,no Rio e em São
Paulo, são negros.Um deles,aliás,fi-
lho de mãe branca,que verbalizou
corretamente sua indignaçãocom a
discriminaçãodo filho:ele só estará
segurose estiverjuntocom a mãe.
Portanto,comoservicáriodepessoa
branca,masnãocomocidadãodeple-
nodireito,negrooubranco.Serásem-
preumserincompleto,sociologica-
mentemutiladopelacor“im própria”
porqueempossedebens“impró-
prios”,numpaísemqueparaserépre-
cisoter.Eemquetersemcaradedirei-
toateracabasendocrime.■

CARVALL

Joséde SouzaMartinsé sociólogo.Pro-
fessorEmérito da Faculdadede Filosofia
da USP, SimonBolivar Professor(Cam-
bridge,1993-94).PesquisadorEmérito
do CNPq. Membro da AcademiaPaulista
de Letras. Entre outros livros, é autor de
"Fronteira - A degradaçãodo Outro nos
Confinsdo Humano"(Contexto).

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