Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11


O MERCADO PÚBLICO E A HISTÓRIA NEGRA DE PORTO ALEGRE


Privatização ameaça


território sagrado


Em 5 de junho, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Junior (PSDB),
apresentou edital prevendo a concessão da administração do Mercado Público,
por 25 anos, à iniciativa privada. A medida ameaça um espaço sagrado de religiões
afro-brasileiras, um território repleto de histórias, de relações surpreendentes
entre paredes e caminhos, mercadorias, divindades e seres humanos

POR VÍTOR QUEIROZ*

P


ai Tiago de Bará gravou uma li-
ve improvisada, em sua própria
casa, no dia 4 de junho deste
ano. Visivelmente nervoso, ele
advertia: “Nós podemos perder o
nosso espaço sagrado [...]. A gente
não está falando só do Bará do Mer-
cado. Todas as paredes, todos os por-
tais, todos os caminhos internos e ex-
ternos do Mercado Público são
espaços sagrados desde quando ele
não existia. Desde quando as ganha-
deiras vendiam seus quitutes para
comprar a alforria dos seus maridos,
dos seus parentes, dos seus amigos”.
Pai Tiago preside uma entidade
destinada à proteção das religiões
afro-brasileiras no Rio Grande do
Sul, a Associação Independente em
Defesa das Religiões Afro-Brasileiras
(Asidrab), além de ser pai de santo.
Sua fala era motivada pelo lançamen-
to iminente de um edital que conce-
deria a administração do Mercado
Público da capital gaúcha, por 25
anos, à iniciativa privada. De fato, o
prefeito Nelson Marchezan Junior
(PSDB) apresentaria esse edital, por
videoconferência, no dia seguinte.
Ainda que o documento de con-
cessão mencionasse que o Mercado é
um patrimônio histórico municipal e
citasse as religiões afro-gaúchas em
um de seus anexos, a visão desse mes-
mo lugar que sua leitura trazia era
oposta àquela do religioso. Pai Tiago
faz questão de qualificar todo o Mer-
cado como um espaço sagrado, um
território repleto de histórias, de rela-
ções surpreendentes entre paredes e
caminhos, mercadorias, divindades e
seres humanos. Já o Mercado do edi-
tal e das declarações oficiais da pre-
feitura é sobretudo um espaço físico.
De meados de 2019 para cá, diver-
sos setores da sociedade civil (dos
afrorreligiosos à OAB-RS e aos per-
missionários, os comerciantes do
Mercado) e da política (do poder le-
gislativo municipal e estadual ao Mi-
nistério Público, o Tribunal de Contas
e os serviços de patrimônio regional e

nacional, Iphae e Iphan) associaram-
-se, tendo em vista a patrimonializa-
ção definitiva do prédio que abriga o
Mercado Público e de algo que está
bem no meio dele, o Bará do Mercado,
do qual falava Pai Tiago. Essa união
de pessoas e instituições tão diversas
foi impulsionada pela intenção de
prevenir as possíveis descaracteriza-

ções ou mesmo danos a esse edifício,
seu entorno e, especialmente, à me-
mória da população negra local, que
poderiam decorrer da concessão.
Em setembro de 2019, o prefeito
confirmou sua intenção de lançar o
edital. Depois de algumas consultas
públicas, convocadas para discuti-lo,
foi lançada, no dia 4 de novembro,

uma Frente em Defesa do Mercado
Público na Câmara de Vereadores
da cidade. Em março deste ano,
houve a última audiência pública
na Assembleia Legislativa do Esta-
do, antes do agravamento da crise
sanitária causada pelo coronaví-
rus. Depois disso, por conta da
pandemia, Marchezan alterou o
funcionamento do Mercado, mui-
tas vezes sem consulta a seus tra-
balhadores, por meio de diversos
decretos especiais.
Desde o lançamento do edital, a
agitação se intensificou nas redes
sociais, com destaque para a atua-
ção da Asidrab, dos permissioná-
rios, da deputada estadual Sofia
Cavedon (PT) e da frente encabe-
çada pelo vereador Adeli Sell (PT).
A batalha judicial e a tentativa de
patrimonializar de uma vez por to-
das esse espaço sagrado, porém, es-
tão longe de terminar.

O CORAÇÃO DA CIDADE
O Mercado Público é, realmente,
central para a vida da capital gaú-
cha sob muitos aspectos – econô-
mico, popular, religioso etc. Sua
construção, que em outubro com-
pleta 151 anos, se confunde com a
história de Porto Alegre, fundada
como uma pequena freguesia no
final do século XVIII e elevada à
capital de província por conta das
rotas comerciais que começaram a
passar por ali. O Mercado, locali-
zado na zona portuária de uma ci-
dade que tem porto até em seu no-
me, logo acabou se tornando o
coração dessa povoação com ares
de entreposto mercantil.
Além de pessoas e mercadorias,
porém, muitas lembranças circu-
lam aquele espaço. Elas fazem
parte da história oficial porto-ale-
grense e também perpassam suas
inúmeras memórias afetivas e fa-
miliares. Para a comunidade ne-
gra local, o Mercado Público é ain-
da um dos territórios de referência
da área central da cidade. A des-
peito do branqueamento da iden-
tidade gaúcha, que convence até
mesmo alguns de seus artistas e
intelectuais,^1 Porto Alegre foi
construída pelas mãos de milha-
res de escravizados.
No antigo Largo do Paraíso, an-
tes mesmo de o Mercado existir, as
chamadas pretas-minas e uma
multidão de ambulantes negros
vendiam de tudo, de quitutes e er-
vas a amuletos. Por ali, entre as do-
cas do carvão e das frutas, passa-
vam também os cativos africanos
ou brasileiros recém-chegados à
cidade, vindos dos portos do Rio de
Janeiro ou de Paranaguá.
Décadas depois, toda essa re-
Exu (estatueta) – povo Yorubá, Nigéria, c.1880-1920 © Reprodução gião central continuava sendo ocu-

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