Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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20 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


“FUNDAMENTALISMO DE COLARINHO-BRANCO”


A “República


Pentecostal” da Nigéria


Qualquer pretensão presidencial na Nigéria está obrigada a conciliar favores
de igrejas tão ricas quanto influentes, inclusive os candidatos muçulmanos...

POR ANOUK BATARD*

N


a Nigéria, epicentro do desper-
tar cristão na África e no mun-
do, o neopentecostalismo, co-
mumente chamado de
cristianismo renascido (born again),
nutre a renovação evangélica. Potên-
cia demográfica e econômica, esse
país da África ocidental produziu um
número significativo de pastores ri-
cos e famosos no mundo inteiro. En-
tre eles, David Oyedepo, bispo da
Igreja da Fé Viva, cuja fortuna foi ava-
liada em US$ 150 milhões em 2015, e
Chris Oyakhilhome, do Ministério In-
ternacional dos Crentes do Mundo do
Amor, igreja mais conhecida pelo no-
me de Embaixada de Cristo, que pos-
sui de US$ 30milhões a 50 milhões em
bens pessoais.^1 Suas “megaigrejas”,

“campos de redenção” e “cidades sa-
gradas” reúnem regularmente deze-
nas e até centenas de milhares de
fiéis. Além de espaços dedicados ao
culto, essas empresas religiosas trans-
nacionais possuem centros de forma-
ção teológica, maternidades, clínicas,
veículos de comunicação, escolas e
até universidades.

UNIVERSIDADES
Assim, nesse país cujos quase 200 mi-
lhões de habitantes se dividem igual-
mente entre cristãos e muçulmanos,
pode-se observar a organização de
um discurso público impregnado de
pentecostalismo. O estilo pentecos-
tal está tanto no universo da cultura
popular (cinema, música, stand-up

comedy, reality shows, talk shows)
como no mundo dos negócios, da
educação e da administração públi-
ca, e até em esferas mais altas do Es-
tado. O papel político de pastores e
instituições cristãs é tal que alguns
estudiosos apresentam o país como
uma “República Pentecostal”.^2
Esse “fundamentalismo de colari-
nho-branco”, nas palavras do sociólo-
go Ebenezer Obadare,^3 surgiu na dé-
cada de 1970, quando a Nigéria se
beneficiou do boom do petróleo. Mi-
lionários surgiram como que por en-
canto e não desapareceram com a cri-
se que veio depois: uma crise
econômica, social e política tão pro-
funda quanto duradoura. Naquele
momento, o discurso neopentecostal

ofereceu elementos explicativos para
o enriquecimento de uma minoria,
estigmatizando os usos maléficos da
feitiçaria pelas elites políticas e eco-
nômicas. Diante dos múltiplos escân-
dalos de corrupção, a doutrina da san-
tidade, que prega o ascetismo, andava
de mãos dadas com a retórica da mo-
ralização da vida pública em voga. O
cristianismo renascido inscreveu-se,
portanto, em um movimento mais ge-
ral de desconfiança em relação à polí-
tica e de crítica do poder. Concomi-
tantemente e em condições bastante
semelhantes, outro movimento reli-
gioso se desenvolveu, assentado em
uma reforma moral: o islã salafista.
Ancorada nos campi universitá-
rios, a renovação carismática foi tra-
zida por jovens urbanos instruídos
das classes médias – que estavam es-
tudando e se preparando para entrar
no mercado de trabalho em um con-
texto de desengajamento e privatiza-
ção do Estado, acompanhado de dis-
cursos que exaltavam o sucesso e a
“resiliência” empresarial. Justamen-
te, o neopentecostalismo f loresceu
no final da década de 1980, substi-
tuindo a doutrina da santidade pela
doutrina da prosperidade, vinda dos
Estados Unidos. Referindo-se ao que
também é conhecido como teologia
da abundância, a pesquisadora Ruth
Marshall-Fratani menciona uma
“mistura de textos bíblicos e psicolo-
gia popular norte-americana do esti-
lo ‘autoajuda’ (self-help) e ‘autonomia
pessoal’ (personal empowerment) ”,
que responde às aspirações de ascen-
são social que os diplomas não conse-
guem mais garantir.^4

RENASCIMENTO
ESPIRITUAL NA PRISÃO
Inicialmente, a ideia de renascimen-
to (born again) remetia a uma busca
por autorrenovação em um nível
individual (na tradição do protestan-
tismo clássico), mas então ela passou
facilmente a ser aplicada no nível da
nação nigeriana, considerada cor-
rompida e traída por aqueles que a
controlavam desde a independência,
ocorrida em outubro de 1960^5 – o que
significava essencialmente os mili-
tares. O retorno ao regime civil
começou com a eleição, em 1999, de
Olusegun Obasanjo, ex-chefe de
Estado que era então o único cristão
desde a guerra civil (1967-1970) a ter
exercido o poder (1976-1979). Duas
décadas depois, portanto, ele contou
especialmente com o movimento do
cristianismo renascido para seduzir
o eleitorado cristão (anglicanos, pro-
testantes, católicos e aqueles que
haviam aderido ao cristianismo
renascido) e para construir sua legi-
timidade como presidente. Durante
a campanha eleitoral, ele falou sobre
David Oyedepo é bispo da Igreja da Fé Viva e teve sua fortuna foi avaliada em US$ 150 milhões, em 2015 sua experiência de renascimento

© Akintunde Akinleye/Reuters

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