Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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22 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


AS REDES SOCIAIS VÃO SALVAR A DEMOCRACIA


No início de junho, o Facebook fechou 446 páginas, 96 grupos e mais de duzentas
contas do Instagram administradas pela companhia franco-tunisiana URéputation.
A empresa havia tentado influenciar, por meio da divulgação de informações falsas,
eleições da África francófona. Laboratório global das manipulações digitais,
o continente reagiu de diferentes maneiras

POR ANDRÉ-MICHEL ESSOUNGOU*

Manipulação


digital na África


P


or muito tempo colocadas no
museu das utopias, as eleições
democráticas se disseminaram
na África no decorrer das três
últimas décadas. Mas, à medida que
o continente se conecta à internet, o
risco de manipulação digital cresce,
principalmente por meio das redes
sociais. A ameaça parece ainda mais
grave na medida em que passa mui-
tas vezes despercebida.
Um detalhe confirma essa amea-
ça: foi na África, principalmente na
Nigéria e no Quênia, que a Cambrid-
ge Analytica testou suas técnicas
fraudulentas de obtenção de dados
utilizadas no referendo sobre o Brexit
e na eleição presidencial norte-ame-
ricana em 2016.^1 Os eleitores desses
países serviram, sem seu conheci-
mento, como cobaias de uma estraté-
gia em três etapas. Em primeiro lu-
gar, recolher, principalmente no
Facebook, dados pessoais de milhões
de cidadãos: idade, sexo, preferências
culturais e políticas. Em seguida,
analisar essas informações para defi-
nir microcategorias. Enfim, orientar
as escolhas individuais, com auxílio
de algoritmos, por meio de uma pro-
paganda feita sob medida, em plata-
formas digitais.^2
Dois ex-funcionários da Cambrid-
ge Analytica, Brittany Kaiser e Chris-
topher Wylie, revelaram que, nas elei-
ções presidenciais de 2013 e 2017 no
Quênia, a empresa britânica, que as-
sessorava o chefe de Estado, Uhuru
Kenyata, coletou dados pessoais dos
eleitores e, considerando esses perfis,
desenvolveu uma propaganda basea-
da em mentiras e exageros.^3
Na Nigéria, seis semanas antes da
eleição presidencial de 2015, um bi-
lionário local que, segundo as decla-
rações de Wylie, estava “apavorado
com a possível vitória do candidato
de oposição”, Muhummadu Buhari,
ofereceu, pagando US$ 2 milhões, os

serviços da Cambridge Analytica. Re-
correndo a especialistas em roubo de
informações digitais (hackers), ela
divulgou nas redes sociais o prontuá-
rio médico do candidato Buhari, en-
tão com 72 anos, dando a entender
que sua saúde não permitiria que
exercesse o poder. Ela também pro-
duziu vídeos mostrando assassinatos
de civis atribuídos a islamitas, suge-
rindo que uma vitória do candidato
de oposição, muçulmano, provocaria
uma escalada de violência. Apesar
desses esforços, dessa vez o candida-
to de oposição venceu.

O FIM DE UMA LONGA PAIXÃO
A plataforma mais popular do conti-
nente africano, o Facebook, com mais
de 200 milhões de usuários, abriga to-
do tipo de manipulação. Enquanto
criava páginas com identidades fal-
sas, uma empresa chamada Archime-
des Group, com base em Tel Aviv (Is-
rael) e que depois desapareceu,
apoiou candidatos nas eleições presi-
denciais no Togo, na República De-
mocrática do Congo (RDC), na Nigé-
ria e na Tunísia em 2019.^4 Cerca de 2,8
milhões de usuários foram visados.
Na Zâmbia e em Uganda, com a ajuda
de funcionários da gigante das teleco-
municações chinesa Huawei, os go-
vernos organizaram a vigilância ele-
trônica de personalidades da oposição
e da sociedade civil organizada.^5 Des-
se modo, em Uganda, a polícia teve
acesso à conta de WhatsApp de Bobi
Wine, músico popular e opositor do
presidente Yoweri Museveni. Esses
roubos permitiram às autoridades
barrar a mobilização dos adversários.
A sucessão de revelações desse gê-
nero marca o fim de uma longa pai-
xão. De fato, as redes sociais foram
por muito tempo percebidas como
catalisadores da participação políti-
ca, vetores da ampliação dos modos
de mobilização e locais de expressão

para os sem voz em todo o continente
negro.^6 Em 2007, Goodluck Jonathan
havia anunciado, no Facebook, sua
candidatura a um novo mandato pre-
sidencial na Nigéria, um ato inédito
que marcava a entrada de atores polí-
ticos africanos na comunicação polí-
tica moderna. Durante a crise pós-
-eleitoral do Quênia em 2008, jovens
engenheiros e blogueiros criaram
uma plataforma, a Ushahidi, espécie
de cartografia colaborativa das vio-
lências ocorridas após as eleições.^7 O
sonho dos profetas da “tecno-utopia”
parecia ter se tornado realidade.
No entanto, desde a metade da dé-
cada passada, muitos dirigentes afri-
canos denunciaram manipulações
digitais para tentar controlar as redes
sociais. Em 2006, o governo etíope
bloqueou o acesso a certos sites,
inaugurando essa prática liberticida
na África subsaariana. A mesma me-
dida seria adotada no Chade, no Bu-
rundi, em Uganda, na RDC, em Ca-
marões e no Togo. Entre 2016 e 2019,
22 países africanos interromperam
ou diminuíram a velocidade de aces-
so à internet, geralmente em perío-
dos eleitorais.
Paralelamente a esses cortes, os lí-
deres de oposição e militantes da so-
ciedade civil foram presos ou tiveram
prisões domiciliares decretadas.^8 Mas
esse tipo de repressão tem um custo
financeiro não negligenciável, visto
que setores significativos da vida eco-
nômica dependem cada vez mais da
internet. Os cortes teriam custado
mais de US$ 2,1 bilhões aos países da
África subsaariana em 2019.^9 A repu-
tação do país que adota essas medi-
das que atentam contra a liberdade de
expressão sofre igualmente.
Mais recentemente, os governos
africanos decidiram taxar o acesso às
redes sociais. Em Uganda, agora é
preciso desembolsar 200 xelins ugan-
denses (R$ 0,30) por dia para ter aces-

so ao Facebook, ao Twitter ou ao
WhatsApp. No Benin, o acesso custa 5
francos CFA (R$ 0,05) por megabite.^10
Essa taxação agrava as desigualdades
de acesso, excluindo ainda mais as
classes desfavorecidas. Além disso, é
difícil ver como ela pode diminuir as
manipulações digitais na medida em
que são feitas geralmente por socie-
dades que dispõem de grandes recur-
sos financeiros e agem do exterior.
Por iniciativa de associações e de
legisladores nacionais, leis restringem
ou dirigem agora a coleta dos dados
pessoais em 25 países africanos. Resta
o verdadeiro desafio das manipula-
ções on-line. Na África do Sul, a co-
missão eleitoral emprega centenas de
pessoas para rastrear as fraudes e sen-
sibilizar os usuários. Mas ainda é pre-
ciso que as instituições nacionais dis-
ponham de um poder real de controle
e de sanção contra companhias como
a Cambridge Analytica ou ainda gi-
gantes, como Facebook e Twitter.
Assim como a carência e o custo
elevado da telefonia fixa haviam fa-
vorecido a penetração do celular na
África por volta dos anos 2000, a ca-
rência e o custo elevado dos compu-
tadores favoreceram a entrada dos
smartphones uma década depois.
Estes se tornaram o principal meio
de acesso à internet e às redes so-
ciais. Foram os engenheiros quenia-
nos os responsáveis pela tecnologia
de pagamentos por meio de aplicati-
vos móveis. Por necessidade, o con-
tinente abriu caminho a práticas
que se tornaram desde então ten-
dências mundiais, como o uso da
carteira eletrônica.^11
As plataformas on-line transfor-
maram as relações sociais no conti-
nente, mais ainda do que a introdu-
ção maciça da telefonia móvel. Com
o WhatsApp, o tempo e a distância
entre os africanos diminuíram con-
sideravelmente. As milhões de trocas

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