Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9


O cinema em tempos de cólera


A tática é doentia: mantêm-se as instituições, não mais para fomentar, mas para perseguir e destruir os patrimônios
pelos quais deviam zelar. É o que faz o Ministério do Meio Ambiente com a Amazônia, a Funai com os índios, o MEC
com as universidades e o Ministério da Saúde com toda a população na pandemia. Com o cinema não seria diferente...

POR THIAGO B. MENDONÇA. COLABORARAM ADIRLEY QUEIRÓS, AFFONSO UCHOA, CRISTINA AMARAL, EWERTON BELICO E LUIZ PRETTI*

UM OLHAR PARA A HISTÓRIA EM BUSCA DE PISTAS E CAMINHOS


A


s portas fechadas da Cinemate-
ca impedem que os antigos
funcionários, mesmo que de
forma voluntária, façam a mí-
nima manutenção no acervo. Cerca-
do de policiais armados, o governo
federal tomou as chaves e desfez os
vínculos com todos os colaboradores.
Restam para cuidar de toda a memó-
ria fílmica do país dois bombeiros,
abandonados à própria sorte, sem sa-
ber o que fazer diante de um acervo
de mais de 250 mil rolos de filmes.
Salvo engano, pela primeira vez há
uma interrupção total das atividades
dessa instituição desde que ela foi
criada, nos anos 1940.
Com essa atitude, o atual governo
demonstra que não pretende inter-
romper apenas o passado, mas tam-
bém o presente. Junto com a Cinema-
teca, todas as estruturas de
financiamento e regulação do cinema
brasileiro foram paralisadas. A tática
é doentia: mantêm-se as instituições,
não mais para fomentar, mas para
perseguir e destruir os patrimônios
pelos quais deviam zelar. É o que hoje
faz o Ministério do Meio Ambiente
com a Amazônia, a Funai com os ín-
dios, o Ministério da Educação com as
universidades e o Ministério da Saúde
com toda a população na pandemia.
Com o cinema não seria diferente.
Esse projeto destrutivo é calcado
nas ideologias dos setores mais rea-
cionários do Brasil, principalmente
de militares, que defendem que o
maior “erro da ditadura” foi, além de
não ter exterminado seus inimigos
(uns 30 mil, segundo o atual presi-
dente), não perceber que a esquerda
conseguiu hegemonizar o pensa-
mento na arte e na educação, mesmo
com a repressão. A ideia é sufocar
qualquer pensamento contrário
àqueles que hoje estão no poder.
Diante desse quadro, o que pode
propor o cinema? Como resistir a esse
panorama de terra arrasada? Estamos
à altura dos desafios que se apresen-
tam? E, não menos importante: que
erros cometemos para que o cinema
fosse destruído sem causar nenhuma
comoção na maioria dos brasileiros?
Ao pensarmos este momento, é
natural procurar paralelo em outro
golpe autoritário, o de 1964. Entre ou-


tros motivos, porque o atual presi-
dente reivindica ser fruto do que ha-
via de pior na tradição castrense que
controlou o país por mais de vinte
anos. Mas talvez nos seja útil pensar
essa relação a contrapelo: o golpe in-
terrompeu um processo constante de
mudanças iniciado com a Revolução
de 1930, que trouxe avanços enormes
ao país: pela primeira vez a classe
trabalhadora ganhou representação,
direitos básicos foram garantidos e
um projeto de Brasil, que envolvia
uma mudança radical na educação e
na cultura, foi apresentado. O cinema
brasileiro moderno nasceu desse no-
vo paradigma: evidenciava a explora-
ção sofrida pelas classes populares e
ao mesmo tempo sua generosidade e
criatividade, apostando em um por-
vir. A transformação prometida, po-

rém, faltou ao encontro. O que surgiu
foi seu contrário: uma contrarrevolu-
ção “preventiva” que apagaria a cha-
ma da liberdade e criaria um novo
paradigma de país, até hoje vigente.
Nos primeiros anos após o golpe,
artistas e intelectuais seguiam com
certa liberdade seus trabalhos.^1 A di-
tadura rompera o elo entre essa pro-
dução e as classes “perigosas”, cam-
poneses e operários, que tiveram
suas lideranças duramente persegui-
das (e mortas) a partir de 1964. Se em
um primeiro momento o ímpeto do
pré-golpe não arrefeceu, aos poucos
a euforia deu lugar à autocrítica e ao
pessimismo. O Cinema Novo Brasi-
leiro, movimento revolucionário que
surgiu nesse processo radical de mu-
danças, foi duramente abalado pelo
golpe. Uma das discussões centrais

que davam sentido a esse cinema era
a superação do subdesenvolvimento.
Seus instrumentos eram a liberdade
formal e autoral, profundamente
comprometidas com as mudanças
estruturais necessárias para superar
a desigualdade no país.
Sufocados entre a censura oficial,
a censura econômica (com o golpe
tornou-se ainda mais difícil o apoio
financeiro para filmes críticos) e o
medo da repressão física (pois a tor-
tura e o desaparecimento eram um
fantasma crescente, rondando o ima-
ginário e a vida prática de muitos
criadores), muitos artistas aceitaram
negociar com a ditadura. Alguns in-
clusive ajudaram a pensar e gerir a
Embrafilme, uma empresa de cine-
ma estatal, criada pela ditadura. Vale
ressaltar que a Embrafilme foi criada

© Vitor Flynn

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