Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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descrever e as regras do casamento entre primos cruzados, poder-se-ia
igualmente dizer, portanto, invertendo a proposição anterior, que é a
organização dualista que constitui, no plano das instituições, a tradução
de um sistema de parentesco que resulta de certas regras de aliança_
Os sociólogos preferiram geralmente a primeira interpretação_ Assim
Tylor, Rivers e perry que escreveu a respeito do casamento dos primos
cruzados: "Esta forma de casamento provém provavelmente da organi-
7.açãO dualista do grupo, tal como é possivel defini-Ia pelo ãngulo so-
ciológico"_ Por que então? O mesmo autor continua: "Parece que s6 é
possivel encontrá-Ia no caso em que a organização dualista existe ou
existiu no passado"_ l1: verdade que acrescenta imediatamente esta pru-
dente reserva: "Mesmo a respeito deste último ponto não possuímos cer-
teza absoluta" _' Com efeito, porque não acreditamos que seja em forma
de simples derivação que a relação entre as duas instituições possa ser
razoavelmente interpretada_ Se a maioria dos autores foram de opinião
diferente, isto acontece, ao que nos parece, por duas razões_
Primeiramente, o sistema de casamento de primos cruzados aparecia,
à luz de nossas próprias idéias sobre os graus proibidos, como profun-
damente irracionaL Por que estabelecer uma barreira entre primos pro-
venientes de colaterais do mesmo sexo e os descendentes de colaterais
de sexo diferente, se a relação de proximidade é a mesma nos dois casos?
Entretanto, a passagem de um a outro estabelece a diferença entre o
incesto caracterizado (os primos paralelos sendo equiparados aos irmãos
e irmãs) e não somente as uniões possíveis, mas até as recomendadas
entre todas (porque os primos cruzados são designados com o nome de
cônjuges potenciais) _ A distinção é incompatível com nosSo critério bio-
16gico do incesto. Não havendo nenhuma razão intrínseca que derive da
relação particular de primos cruzados, concluiu-se daí que a instituição
inteira devia ser conseqüência indireta de fenômenos de outra ordem.
Em segundo lugar, ficamos impressionados pelo fato da mitologia
indígena descrever freqüentemente a instituição das metades como uma
reforma deliberada (o que sem dúvida não forneceria uma razão sufi-
ciente para crer que realmente tenha acontecido assim). Além disso, em
certos casos, pelo menos, este caráter parecia atestado pelos testemu-
nhos mais autorizados. l1: o que sugerem, por exemplo, Howitt para a
Austrália, e documentos antigos para os Huron da América do Norte.'
Deduziu-se dai que a instituição dualista tinha sido concebida como meio
de impedir o incesto, meio parcialmente, quando não totalmente, eficaz.
Com efeito, o sistema de metades evita sempre o incesto entre irmãos
e irmãs, e também o incesto entre pai e filha em um regime patrilinear,
e o incesto entre mãe e filho em um regime matrilinear. O caráter ir-
racional da divisão dos primos em dois grupos é considerado então como
um defeito do sistema.

Estas próprias imperfeiçôes davam aos defensores da teoria um sen-
timento de segurança, porque dificilmente teriam concebido povos bár-
baros chegando a uma solução perfeita de seus problemas. Se, pelo


  1. W. J. Perry, The Children 01 the Sun, p. 281.

  2. M. Barbeau, Iroquois Clans and Phratries. American Anthropologist, vaI. 19, 1917.


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