Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

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conflito possível de atribuições: "come-se no kepun e herda-se no lajima",
afirma o ditado indígena_ Como os graus proibidos definem-se pela exo-
gamia de kepun e de lajima, param praticamente nos primos paralelos
em linha materna_ Mas se a exogamia de lajima fosse tão rigorosa quan-
to a outra, todos os primos paralelos estariam evidentemente excluídos_"
Finalmente, os Herrero têm uma predileção positiva pelo casamento dos
primos cruzados, que poderia resultar da coincidência de vinte clãs
aproximadamente, patrilineares, patrilocais e exogâmicos, otuzo, com seis
a oito 'clãs matrilineares não localizados, canda (plural omaanda)."
Seriamos facilmente levados a concluir desses exemplos, e ainda de
outros, que sempre e por toda parte o casamento dos primos cruza-
dos explica-se por uma dupla dicotomia do grupo social, conscientemente
expressa nas instituições ou agindO como mola inconsciente das regras
consuetudinárias.

Não temos a intenção de contestar que ãs vezes possa acontecer tal
caso. Mas não acreditamos que seja possível extrapolar, partindo de exem-
plos exatos e limitados, nem invocar uma dicotomia cuja existência não
é freqüentemente confirmada nas instituições e na consciência dos in-
dígenas, para explicar um sistema tão geral quanto o casamento dos
primos cruzados. Que relação existe, pois, entre os dois fenômenos?
Antecipemo-nos aos exemplos australianos, a cujo exame são intei-
ramente consagrados os últimos capítulos desta primeira parte_ Não he-
sitamos em interpretar os sistemas Kariera ou Aranda partindo de uma
dupla dicotomia, às vezes até mais complexa. Mas toda a questão reside
em saber se a Austrália apresenta um caso privilegiado, no qual se des-
venda a natureza última das regras do parentesco e do casamento, tal co-
mo existem de maneira universal, ou se não estamos em presença de uma
teoria local (da qual conhecem-se em outros lugares exemplos isoladOS),
desenvolvida pela consciência indígena para pôr em forma seus próprios
problemas, constituindo uma espécie de racionalização dos fenômenos.
Chocamo-nos aqui com o problema fundamental da explicação nas ci-
ências sociais. Porque, se é verdade - conforme Boas com razão acen-
tuou - que os fenõmenos sociais de todas as espécies (linguagem, cren-
ças, técnicas e costumes) apresentam o caráter comum de ser elabora-
dos pelo espírito no nível do pensamento inconsciente", a mesma ques-
tão se levanta sempre a propósito de sua interpretação_ O aspecto pelo
qual são apreendidos pela consciência dos homens reflete a verdadeira
maneira que lhes deu nascimento, ou devemos ver nele somente um pro-
cedimento de análise, cômodo para explicar o aparecimento do fenõmeno
e seus resultados, mas não correspondendo necessariamente ao que de
fato aconteceu? Convém definir com maior exatidão nosso pensamento
sobre este ponto.
Conhece-se um outro terreno em que as situações individuais são in-
terpretadas em função de uma dicotomia simples ou complexa, e no qual


  1. C. Daryll Ferde, Kinship in Urnor _ Double Unilateral Organization in a semi·
    Bantu Society. American Antropologist, voI. 41, 1939; ver também, do mesmo autor:
    Governrnent in Urnor. Africa, voI. 12. 1939.

  2. H. G. Luttig, The ReligiOUs System and Social Organization 01 the HeTTero,
    Utrecht 1934, p. 85-86.

  3. Franz BOas, Handbook Df American Indian Languages. Bureau of American
    Ethnology. Bu)letin 40, Washington 1911; Introdução, p. 6758.


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