Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

Observemos somente que em caso de multiplicidade indeterminada dos
grupos exogâmicos. patrilíneares e matrilineares, a regra da dupla exoga-
mia não basta para tornar todos os casamentos conformes com o modelo
ideal da união entre primos cruzados bilaterais. O casamento com a filha
do irmão da mãe (prima cruzada matrilateraD estabelece um obstáculo
absoluto à reprodução das gerações alternadas (com efeito, os descenden·
tes preservam indefinidamente o grupo, patrilinear ou matrilinear, de seu
ascendente masculino ou feminino, segundo o sexo, e adquirem indefinida·
mente um novo grupo alterno). Finalmente, se a exigência metafísica da
reencarnação por gerações alternadas é a razão de ser do sistema, como
afirma Rattray, dada a organização social concomitante, só pOde ser sa·
tisfeita na hipótese do casamento com a filha da irmã do pai (prima
cruzada patrilateraD, como observou com razão B. S. Seligman."
As razões teóricas deste fenômeno aparecerão mais adiante." Mas,
limitando-nos ao caso considerado, duas observações se impõem. Os ne-
gros do Surinam, descendentes de escravos evadidos que desenvolveram
nas Guianas uma civilização autônoma, cujos empréstimos tomados às
culturas européia e indiana não chegam a dissimular o fundo africano,
possuem uma organização social que lembra ainda a dos Ashanti, isto é,
o clã é matrilinear, mas os filhos herdam do paios tcina, conjunto de
proibições alimentares hereditárias, cuja violação pOde provocar a lepra.
Entretanto, as proibições do casamento atingem somente a linha materna.
É possível facilmente casar-se na linhagem do irmão do pai e na da
irmã do pai. 31 Devemos então concluir que as moças e os rapazes her-
dam indiferentemente as tcina do pai, conforme o texto de Herskovits
faz supor?" Tal é, talvez, o caso entre os negros do Surinam. No que
diz respeito aos Ashanti, pelo contrário, temos um testemunho formal.
Bosman escrevia em 1795: j'O filho nunca come o que é proibido ao pai,
e nesse assunto a filha segue o exemplo da mãe". U Haveria assim não
duas mas três formas diferentes de transmissão hereditária, a saber, os
filhos e as filhas seguiriam o ntoro do pai, os filhos e as filhas igual-
mente seguiriam o clã da mãe, mas os filhos seguiriam a tcina do pai
e as filhas a tcina da mãe, respectivamente.
Seria possível objetar que esta terceira forma de filíação não influi
sobre as regras do casamento, sendo portanto inútil levá-la em conta.
A Objeção seria fundada se a dicotomia dos sexos não fosse tão fre-
qüentemente característica de um sistema de casamento unilateral, precí·
samente porque, em tal sistema, os irmãos e as irmãs não seguem o
mesmo destino matrimonial. No sistema de casamento com a prima cru·
zada patrilateral, o filho reproduz o casamento de sua mãe e a filha o
do seu pai. É por conseguinte compreensível que cada um receba do
outro genitor esta fração de posição social - os deveres pessoais -
que não tem relação com o casamento. Encontraríamos, assim, o casa-
mento com a filha da irmã do pai, cuja existência já tinha sido suge·
rida pelas crenças metafísicas. O leitor para quem esta análise pareça



  1. B. Z. Seligman, op. cit., p. 119.

  2. Cf. Capo XXVII.

  3. M. J. Herskovits, op. cito

  4. " ... the children inherit personal food taboos ... ", ibid., p. 719; e, mais adiante,
    a passagem inteira consagrada ao apego pessoal que o filho ou a filha podem
    ter pelo pai; ibid., p. 720.

  5. Citado por Herskovits, ibid., p. 719, n. 14.


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