r
L
Uma apreciação mais justa da taxa muito elevada das mutações e da
proporção das que são nocivas levaria a afirmações mais atenuadas, mes-
mo se as conseqüências deletérias das uniões consangüíneas não tiveram
papel na origem ou na persistência das regras da exogamia. A respeito
da causalidade biológica, limitar-me-ei agora a dizer, repetindo uma fór-
mula célebre, que, para explicar as proibições do casamento, a etnologia
não tem necessidade dessa hipótese.
No que diz respeito à oposição entre natureza e cultura, o estado
atual dos conhecimentos e o da minha própria reflexão (um, aliás, se-
guindo-se ao outro) oferecem em vários sentidos um aspecto paradoxal.
Propunha traçar a linha de demarcação entre as duas ordens guiando·me
pela presença ou ausência da linguagem articulada, e poder-se·ia pensar
que o progresso dos estudos de anatomia e fisiologia cerebrais conferem
a este critério um fundamento absoluto, porque certas estruturas do siso
tema nervoso central, próprias exclusivamente do homem, parecem gover·
nar a capacidade de denominar os objetos.
Mas, por outro lado, apareceram diversos fenômenos que tornam a
linha de demarcação, senão menos real, em todo caso mais tênue e tor-
tuosa do que se poderia imaginar há vinte anos. Processos complexos
de comunicação, pondo em ação às vezes verdadeiros símbolos, foram
descobertos nos insetos, peixes, aves e mamíferos. Sabe-se, também, que
algumas aves e mamíferos, principalmente os Chimpanzés no estado sel-
vagem, sabem confeccionar e utilizar instrumentos. Nessa época cada vez
mais recuada, quando teria começado o que convém chamar sempre o
paleolítico inferior, espéCies e mesmo gêneros diferentes de hominídeos,
talhadores de pedras e de ossos, parecem ter coabitado nos mesmos
lugares.
Somos assim levados a perguntar qual é o verdadeiro alcance da
oposição entre a cultura e a natureza. Sua simplicidade seria ilusória
se, em grande parte, tivesse sido obra de uma espécie do gênero H orno
chamada por antífrase sapiens, que se esforçava ferozmente em eliminar
formas ambíglias, julgadas próximas do animal, porque teria sido ins-
pirada, há centenas de milhares de anos, pelO mesmo espírito obtuso
e destruidor que a impele hoje em dia a aniquilar outras formas vi·
vas, depois de tantas sociedades humanas falsamente repelidas para o
lado da natureza, porque não a repudiavam (NaturvOlkern). É como se
ela tivesse primeiramente pretendido ser a única a personificar a cul·
tura em face da natureza, e permanecer agora, exceto em casos nos
quais pOde submetê·la totalmente, a exclusiva encarnação da vida em
face da matéria inanimada.
Nesta hipótese, a oposição entre cultura e natureza não seria nem
um dado primitivo nem um aspecto objetivo da ordem do mundo. Se·
ria preciso ver nela uma criação artificial da cultura, uma obra defen·
siva que esta última teria cavado em redor de si porque não se sentia
capaz de afirmar sua existência e originalidade a não ser cortando to·
das as passagens adequadas a demonstrar sua conivência originária com
as outras manifestações da vida. Para compreender a essência da cul·
tura seria preciso, portanto, remontar até à fonte e contrariar-lhe o ím·
peto, reatar todos os fios rompidos, procurando a extremidade livre de-
les em outras famílias animais e mesmo vegetais. Finalmente, poder-se-á
talvez descobrir que a articulação da natureza com a cultura não se
26