Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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Estes costumes marcam, sem dúvida, um antagonismo latente entre
linhagens femininas e linhagens masculinas, quer estas últimas sejam
formadas por pais ou irmãos ou então por tios e cunhados. São sobre-
tudo reveladoras de uma atitude em face do sistema. Porque uma mulher
não pode colocar no mesmo plano a linhagem de que sua mãe descende,
cuja nostalgia sem dúvida esta lhe transmitiu, e a linhagem na qual irá
viver a mesma existência longínqua e isolada que é o destino das moças
nascidas nos regimes patrilineares e harmônicos. Antepassados maternos
humanos, antepassados paternos animais, tio que salva sua irmã e sua
sobrinha das garras do urso raptor, toda esta mitologia Gilyak é pro·
fundamente impregnada de uma poesia que chamaríamos de bom grado
feminina, que parece, na verdade, representar o sistema matrimonial visto
por mulheres, ou, pelo menos, pelos irmãos dessas mulheres, sempre
levados a superestimar a perda que sofrem ao sefem privadOS de suas
irmãs, com relação ao ganho que realizam obtendo esposas. Falemos
de maneira ainda mais nítida. É a mitologia de um sistema linear, oposto
a um sistema familiar e agnático, no qual o irmão (conforme mostramos
várias vezes) iguala ou supera, com relação à irmã, os direitos que o
pai pode exercer sobre sua filha. Teremos oportunidade de nos lembrar·
mos deste fato a propósito dos Shang da Chína arcaica, onde o irmão
sucedia ao irmão antes do filho."
O fato significativo, diz Granet evocando um período mais recente,
é que o mais poderoso sentimento a que a prática da exogamia dá
origem entre as mulheres era o sentimento de expatriação. As canções
antigas exprimem-no em um verso-fórmula: "Toda moça que se casa deixa
ao longe irmãos e pais..... Quando as canções de amor exaltam a feli·
cidade dos esposos é para dizer que existe entre eles um acordo fra·
terno. '. Mas, inversamente, uma das características da vida conjugal no
inicio, tanto entre os chineses quanto entre seus vizinhos bárbaros, é
a extrema dificuldade da aproximação entre esposos (ligados por uma
união exógama). É: preciso não menos de três anos para que o casamento
se torne definitivo, tanto entre estes bárbaros como entre os antigos
chineses, e entre estes últimos acontecia que o marido só obtinha da
mulher seu primeiro sorriso ao fim de três anos. Durante três anos, entre
os bárbaros, a recém·casada (que goza de inteira liberdade sexual), leva
uma vida de moça. Dizem-nos que seus irmãos mostram-se então extre-
mamente ciumentos. Na China, nas canções do tipo da mal casada, a
esposa, que não pode se ufanar de se dar com seu marido como se fosse
um irmão, exclama curiosamente: "meus irmãos não saberão, pois ririam
e zombariam". l~
Tal é, em suma, a atitude que atinge o maior desenvolvimento entre
os Yakutos, com o costume - enriquecido por uma completa floração
folclórica em torno do tema da "irmã-amante" - chamado chotunnur,
que consiste nos irmãos deflorarem a irmã antes de deixá·la partir para
um casamento exógamo." Encontra·se o eco deste costume até no Cáu·
caso, entre os Pschaves, onde uma filha única "adota" um irmão mo-


  1. Cf. capo XX.

  2. M. Granet, CatégOries p. 148 e 152' encontramos todos estes costumes ainda
    vivos na ÁSia do sudeste (cf. capo XVI). ,

  3. Czaplicka, op. cit., p. 113.


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