Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

traseiro ao irmão mais velho. um quarto dianteiro ao innão mais moço,
os dois outros membros aos filhos mais velhos, o coração e os rins às
mulheres, o rabo e as ancas aos aliados, e um pedaço do filé ao tio
matemo. Mas, em certas regiões da Arrica Oriental, as regras são in·
finitamente mais complicadas, pois variam conforme se trate de bois,
carneiros ou cabras. Além dos parentes, o chefe e aqueles que ajudaram
a trazer o animal tém direito a uma parte. Essa distribuição é feita
de maneira menos ostensiva do que a divisão na praça da aldeia, cujo
fim é "que os que comem e os que não comem possam ser vistos", No
interior da famllla, a autoridade repousa com efeito sobre "a posse e o
controle do alimento", H
J!: preciso finalmente citar a descrição, devida ao mesmo observa·
dor, da divisão de um grande antílope, entre vinte e dois adultos e vinte
e sete crianças: "Enquanto se retalhava o animal reinava a mais intensa
excitação .. , e a refeição foi precedida por murmúrios de cobiça. As
mulheres amassavam no pílão com entusiasmo um suplemento de fari·
nha 'para comer com toda esta carne! ... ' Imediatamente depois do fes·
tim, as mulheres reuniram·se não longe de mim. Conversavam ruidosa·
mente e não se cansavam de escrever com êxtase como se sentiam faro
tas. .. Uma velha, muito alegre, exclamava, batendo no estõmago: slnto-me
ter voltado ao tempo de moça, tenho o coração tão leve ... ""
Sem dúvida, tomamo-nos mais sensíveis desde alguns anos ao valor
dramático de situações desta ordem. Em todo caso, não seria excessivo
prevenir o leitor eventualmente inclinado a apreciá·las na perspectiva de
nossa cultura tradicional, que se compraz em opor o patético do amor
infeliz ao cômico da barriga cheia. Na Imensa maioria das sociedades
humanas os dois problemas são colocados no mesmo plano, porque, em
um e outro terreno, a natureza deixa o homem em presença do mesmo
risco: o destino do homem farto oferece o mesmo valor emotivo, e pOde
servir de pretexto para a mesma expressão lírica, que o do homem
amado. A experiência primitiva afirma, aliás, a continuidade entre as
sensações orgânicas e as experiências espirituais. O alimento está intei·
ramente impregnado de sinais e de perigos. O sentimento de "calor" pode
ser um denominador comum de estados para nós tão diferentes quanto
a cólera, o amor ou o empanturramento. Este último, por sua vez, Impede
as comunicações com o mundo sobrenatural. 1<1
Para admitir a equiparação das mulheres aos bens, de um lado es·
cassos e de outro essenciais à vida do grupo, não é preciSO evocar o
vocabulário matrimonial da Grande Rússia, onde o noivo é chamado "o
negociante" e a noiva "a mercadoria",1T A comparação parece menos
chocante se tivermos presentes no espírito as análises de A. Richards, que


nos mesmos termos: "As regras do parentesco são igualmente a base da divisão
dos bens, o que explica por que o indígena distribui tudo o que possui" (A. P.
Elkin, Anthropology and the Future of the Australian Aborigines, Oceania, voI. 5,
1934, p. 9).


  1. A. Richards, Hunger and Work.", p. 80-81.

  2. A. Richards, Land, Labour .. " p. 58-59.

  3. A. Richards, Hunger and Work, .. , p. 167.

  4. M. Kowalevsky, Marriage among the Early Slavs, FOlklore, vaI. I, 1690, p. 480.
    O mesmo simbolismo encontra·se entre os cristãos de Mossul, onde o pedido de
    casamento reveste-se de uma expressão estilizada: "O senhor tem uma mercadoria
    para nos vender?.. Realmente a sua mercadoria é excelente! Nós compramos" (M.
    Kyrlakos, Fiançailles et marlage à Moussoul, Anthropos, voI. 6, 1911, p. 775).


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