Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

deia as convenções exigem que os dois grupos locais não consumam
cada qual o alimento que trouxe, mas troquem suas provisões, e que
cada qual coma o alimento do outro." O ato do homem ou da mulher
que, como no caso da mulher do provérbIo Maori Kai kino ana te Arahe,
comesse em segredo os pratos de cerimônia sem oferecer uma parte de-
les '", provocaria em seus parentes próximos sentimentos que poderiam
ser, segundo as circunstâncias e as pessoas, de ironia, de zombaria, des-
gosto, desprezo e mesmo eventualmente cólera. Mas, cada qual em seu
gênero, estes sentimentos despertam um eco enfraquecido de emoções do
mesmo tipo, que evocamos nos capítulos precedentes. Nesta realização
individual de um ato que normalmente exige a participação coletiva, pa-
rece que o grupo percebe confusamente uma espécie de incesto social. H
Mas o ritual das trocas não está somente presente nas refeições de
cerimõnia. A polidez exige que se ofereça o sal, a manteiga, o pão, e que
se apresente o prato ao vIzinho, antes da pessoa servir-se. Freqüente-
mente, observamos o cerimonial da refeição nos restaurantes baratos do
sul da França, sobretudo nessas regiões onde, sendo o vinho a Indústria
essencial, é envolvido por uma espécie de respeito místico, que faz dele
o "rich food" por excelência. Nos pequenos estabelecimentos onde o vi·
nho está Incluído no preço da comida, cada freguês encontra, diante
do prato, uma modesta garrafa de um líquido na maioria das vezes in-
digno. Esta garrafa é semelhante à do vizinho, como são as porções de
carne e de legumes que uma empregada distribui ao redor. Entretanto,
manifesta·se imediatamente uma singular diferença de atitude com rela·
ção ao alimento líquido e ao alimento sólido, porque este último re·
presenta as servidões do corpo e o outro um luxo, o primeiro serve para
alimentar, o outro para homenagear. Cada conviva come, se é possível
dizer, para si, e a observação de um dano mínimo na maneira pela qual
foi servido desperta a amargura com relação aos mais favorecidos e
uma ciosa queixa ao dono do restaurante. Mas com o vinho dá-se coisa
inteiramente diferente. Se uma garrafa for insuficientemente cheia o pos-
suidor dela apela com bom humor para o julgamento de um vizinho.
E o dono da casa terá de enfrentar não a reivindicação de uma vítima
individual mas a repreensão comunitária. Isto acontece porque, com efei-
to, o vinho, diferentemente do "prato do dia", bem pessoal, é um bem
social. A pequena garrafa pode conter apenas um copo, que esse conteú-
do será derramado não no copo do detentor mas no do vizinho. E este
executará logo a seguir um gesto correspondente de reciprocidade.



  1. Ibld., p. 311 e 321.

  2. E. Best, The Maon, Wellington 1924, voI. 1, p. 425.

  3. Cf. as versões grega e cambogiana de Pele de asno, onde o rei apresenta
    sob uma forma simbólica seus desejos incestuosos sobre sua filha: "Um homem
    tem um cordeiro que ele próprio criou e alimentou, Vale mais que seja ele que
    o coma ou que seja um outro homem?" E na versão Khmer: "Convocando um dia
    seus mandarins, perguntou-lhes se o homem devia comer ou vender os frutos da
    árvore que tinha plantado" (E. Cosquin, Etudes folkloriques, Paris 1922, p. 9), -
    Inversamente, entre os baigas da índia central, o incesto expia-se oferecendo gran-
    des festins (V. Elwin, A Note in the Theory and Symbolism of Dreams among the
    Baiga. British Journal 01 Medical Psychology, 1939); e os indígenas das ilhas Trobriand
    justificam sua indignada condenação do incesto entre pai e filha - que não é, no
    regime matrilinear, urna infração da lei da exogamia e que não é sancionado pelas
    doenças rituais - dizendo: "]f: um grande mal porque ele já se casou com a mãe,
    já se apropriqu dos primeiros presentes" (B. Malinowski, The Sexual Life ... , voI. 2,
    p. 530·531).


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