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tranhos do restaurante, e talvez alguém leve um susto diante da su-
gestão de que a repugnância de um camponês meridional em beber seu
próprio frasco de vinho forneça o modelo segundo o qual se construiu
a proibição do incesto. Sem dúvida, esta última não provém daquela.
Acreditamos, no entanto, que todas as duas constituem fenômenos do
mesmo tipo, que são elementos de um mesmo complexo cultural, ou mais
exatamente do complexo fundamentai da cultura. Esta identidade funda-
mental é aliás aparente na Polinésia, onde Firth distingue três esferas
de troca, em função da mobilidade relativa dos artigos que participam
da operação. A primeira esfera compreende sobretudo o alimento, em
todas as suas diversas formas. A segunda engloba {t .. corda trançada e
o tecido de casca; na terceira colocam·se os anzóis de escama e de con-
cha, a amarra, os pães de turmeric e as pirogas. Acrescenta: "a essas
três esferas de troca deve-se acrescentar uma quarta, quando se trata de
bens cuja qualidade é individual. Assim, por exemplo, a transferência da
mulher por um homem que não pode pagar sua canoa de outra ma-
neira. As transferências de terra podem ser colocadas na mesma cate-
goria. As mulheres e as terras são dadas em pagamento de obrigações
individuais" .. .,
Talvez alguém nos faça uma objeção prévia, que é indispensável dis·
sipar antes de levar mais longe a demonstração. Dir-se-á que estão sendo
aproximados dois fenômenos que não são da mesma natureza. Sem dú·
vida, o dom constitui uma forma primitiva de troca. Mas desapareceu
precisamente em proveito da troca, exceto algumas sobrevivências, como
os convites, as festas e os presentes, que foram abusivamente postos
em relevo. Porque em nossa sociedade a proporção dos bens que são
transferidos segundo estas modalidades arcaicas representa uma porcen·
tagem irrisória relativamente aos que são objeto de comércio e de ne-
gócio. Os dons recíprocos são divertidos vestígios, que podem reter a
curiosidade do antiquário, mas não é admissível fazer derivar de um tipo
de fenômeno hoje em dia anormal e excepcional, de interesse puramente
anedótico, uma instituição como a proibição do incesto, que é tão ge-
rai e importante em nossa sociedade quanto ~m qualquer outra. Dito
diferentemente, pOdem objetar-nos, conforme nós próprios fizemos a
McLennan, Spencer, Lubbock e Durkheim, que 'estamos derivando a re-
gra da exceção, o geral do especial, a função da sobrevivência. Talvez
se acrescente que entre a proibição do incesto e o dom reCíproco só
existe um único caráter comum, a repulsa individual e a reprovação so-
cial dirigidas contra o consumo unilateral de certos bens. Mas dir-se-á
que o caráter essencial dos dons reCíprocos, isto é, o aspecto positivo
da reciprocidade, falta inteiramente no primeiro caso, de tal modo que
nossa interpretação, a rigor, só poderia ser válida para os sistemas exo-
gâmicos (e partiCUlarmente as organizações dualistas) que apresentam
este caráter de reciprocidade, e não para a proibição do incesto tal como
é praticada em nossa sociedade.
Começaremos pela segunda objeção, à qual já foi feita alusão no
capítulo precedente. Afirmamos, com efeito, que a proibição do incesto
e a exogamia constituem regras substancialmente idênticas, não diferin-
do uma da outra ~enão por um caráter secundário, a saber, que a reci-
- R. Firth, Primitive Polynestan Economics, p. 344.
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