Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11


recadação. Nos Estados Unidos, ren-
da e patrimônio representam 60% da
arrecadação. A média dos países da
OCDE é de 40%. Por outro lado, a tri-
butação sobre o consumo representa
quase 50% de tudo o que se arrecada
no Brasil. Nos Estados Unidos, esse
percentual é de 17%, enquanto a mé-
dia dos países da OCDE é de 32,4%.
Os milhões de brasileiros que têm
dificuldade para colocar comida na
mesa precisam lidar com uma altíssi-
ma carga tributária para comer e se
manter no dia a dia. Os que têm jati-
nhos, lanchas, iates, mansões, não.
Injusto, desigual e estarrecedor.
A instituição do imposto sobre
grandes fortunas (IGF), prevista no
artigo 153, inciso VII, da Constitui-
ção, pode adicionar mais R$ 40 bi-
lhões aos cofres da União. Pela pro-
posta de tributação dos super-ricos,
o valor seria obtido de forma gra-
dual, com alíquota inicial de 0,5%
sobre patrimônios acima de R$ 10
milhões; 1% sobre patrimônios aci-
ma de R$ 40 milhões e até R$ 80 mi-
lhões; e 1,5% sobre patrimônios aci-
ma de R$ 80 milhões.
Com apenas duas medidas (IRPF
e IGF) já teríamos um acréscimo de
R$ 200 bilhões na arrecadação do
país, mais que suficiente, por exem-
plo, para ampliar o Programa Bolsa-
-Família, tanto em relação ao núme-
ro de famílias atendidas quanto ao
valor médio do benefício.
Com o passar do tempo, fica mais
claro que as reformas chamadas de
“estruturantes”, iniciadas em 2017
com a reforma trabalhista no gover-
no de Michel Temer, seguida pela da
Previdência de Jair Bolsonaro em
2019, prestaram-se somente a con-
centrar mais renda e riqueza no topo
e a aprofundar a desigualdade. Para
os mais pobres, o que vemos é o au-
mento do desemprego, do desalento
e da fome. É fundamental encarar as
mazelas e não deixar, mais uma vez,
que os pobres paguem essa conta.


Há medidas simples e emergen-
ciais que podem ser tomadas. O do-
cumento que convoca os super-ricos
ao pagamento de tributos também
prescreve a criação da Contribuição
Social sobre as Altas Rendas (CSAR),
com uma alíquota de 10% sobre os
rendimentos totais que excederem o
valor anual de R$ 720 mil, uma medi-
da que alcança cerca de 208 mil con-
tribuintes, o que representa 0,098%
da população. O potencial arrecada-
tório é de R$ 35 bilhões.
Outro f lanco que contribui para o
aumento da desigualdade são as he-
ranças, que, no Brasil, gozam de alí-
quotas muito baixas na comparação
internacional: alíquota máxima de
8%. Nossos vizinhos Chile e Equador
cobram 35%; Estados Unidos, 40%;
Alemanha, 50%; Espanha, 64%; Bél-
gica, 80%. O Estado brasileiro incen-
tiva a manutenção dos super-ricos, da
concentração renda e do patrimônio.
Uma adequação das alíquotas do im-
posto sobre heranças, de até 8% para
até 30%, percentual abaixo de todos
os países citados, possibilita a arreca-
dação de cerca de R$ 14 bilhões.
O documento de tributação dos
super-ricos também olha para seto-
res econômicos que produzem exter-
nalidades negativas, como o setor ex-
trativo de recursos minerais, que
geram demandas de políticas públi-
cas, principalmente assistenciais, de
saúde e ambientais. É justificável que
maior parcela das atividades do setor
seja onerada por uma elevação da
Contribuição Social sobre o Lucro Lí-
quido (CSLL). O aumento da alíquota
para 20%, no caso das pessoas jurídi-
cas que atuem no setor extrativo de
recursos minerais, pode gerar acrés-
cimo estimado de R$ 3 bilhões. A alí-
quota de 10%, no caso das demais
pessoas jurídicas, poupando as em-
presas do Simples Nacional, pode ge-
rar mais R$ 8,5 bilhões.
A situação de urgência econômica
também permite a elevação tempo-

rária da alíquota da CSLL para o setor
financeiro. Pode-se aumentar, entre
2021 e 2024, a alíquota dos bancos pa-
ra 40%, distribuidoras de valores mo-
biliários, corretoras de câmbio e de
valores mobiliários, sociedades de
crédito, financiamento e investimen-
tos, sociedades de crédito imobiliá-
rio, administradoras de cartões de
crédito e sociedades de arrendamen-
to mercantil.
Há várias possibilidades de au-
mento da arrecadação que podem
promover uma redução da desigual-
dade social no Brasil, incrementando
as receitas e ajudando o país a sair do
rombo fiscal em que se encontra. Os
pobres não precisam arcar mais uma
vez com o ônus.

Precisamos fortalecer as micro e
pequenas empresas, optantes pelo
Simples Nacional, com a isenção do
Imposto sobre a Renda das Pessoas
Jurídicas (IRPJ) e da CSLL para as em-
presas com faturamento bruto abai-
xo de R$ 360 mil anuais. A isenção
pode reduzir em quase 60% o peso
dos impostos; mais de 900 mil em-
presas seriam beneficiadas, cerca de
75% das optantes pelo Simples. São
quase 12 milhões de trabalhadores
empregados pelas micro e pequenas
empresas, que podem expandir os
negócios e aumentar a quantidade de
trabalhadores.
Todos os pontos citados até aqui
contribuem para a redução da desi-
gualdade e para a efetivação da pro-
gressividade de acordo com a capaci-
dade contributiva.

Com o incremento de receitas
também é possível propor um novo
modelo de repartição do imposto de
renda e do imposto sobre grandes
fortunas com estados e municípios.
O documento de tributação dos su-
per-ricos propõe que 8% da arrecada-
ção do imposto de renda e 10% da ar-
recadação do IGF sejam repartidos
com os estados e o Distrito Federal, e
que 2% do IR e 10% do IGF sejam re-
partidos com os municípios. Os re-
cursos serão distribuídos de forma
direta, 50% proporcionalmente à po-
pulação e 50% na proporção inversa
do PIB per capita.
Por esse modelo de repartição do
imposto de renda e do imposto sobre
grandes fortunas, os estados teriam
um reforço estimado em R$ 83 bi-
lhões, e os municípios, em R$ 54
bilhões.
O eterno Darcy Ribeiro nos ensi-
nou: “A crise da educação no Brasil
não é uma crise, é um projeto”. Da
mesma forma, a manutenção da desi-
gualdade no Brasil não é uma crise, é
um projeto desumano engendrado
pelas elites. Enquanto a Constituição
Federal de 1988 só funcionar para
onerar pobres e aliviar as elites, per-
maneceremos em crise.
O Brasil só se tornará uma nação
digna quando garantir assistência,
saúde, educação, cultura, trabalho,
moradia e comida todos os dias na
mesa de 210 milhões de brasileiros e
brasileiras.
É pedir demais? É sonhar demais?
Não cumpriremos esse dever-ser sem
que os super-ricos sejam justa e devi-
damente tributados. Poupando 99,7%
dos brasileiros e cobrando apenas do
0,3%, os super-ricos, já seremos um
país menos desigual.
Eis aí um primeiro grande passo
de uma longa caminhada.

*Charles Alcantara é presidente da Fe-
deração Nacional do Fisco Estadual e Dis-
trital (Fenafisco).

O país é uma espécie de
oásis para milionários.
Aqui é possível aumen-
tar a fortuna e, ao
mesmo tempo, pagar
menos impostos

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