16 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
Bem como, por fim, Donald
Trump Junior, substituto de seu pai
no seio da Trump Organization: “No
passado, os dois partidos acredita-
vam na bondade da América. [...] Des-
ta vez, o outro partido ataca até os
princípios sobre os quais nossa nação
foi fundada. Liberdade de pensamen-
to. Liberdade de expressão. Liberdade
religiosa. O estado de direito”.
Lembrando que tudo isso se con-
centrou apenas no primeiro dia da
Convenção Republicana. Os três
dias seguintes foram dedicados a
construir uma visão alternativa da
realidade, na qual Trump era tão
inocente quanto um recém-nascido.
Ele fez tudo o que pôde contra a epi-
demia, cuja culpa, aliás, cabe exclu-
sivamente à China, e a retomada
econômica está aí, bem diante de
nós. A tarefa de explicar que Trump
não era racista parecia delicada, ti-
veram então a ideia de confiá-la a
um leque de atletas negros que vi-
riam certificar que o presidente
amava os afro-americanos.
Para entender de verdade a elei-
ção crucial que nos aguarda, convém
em primeiro lugar levar em conside-
ração a maneira como as grandes mí-
dias de informação deste país se ati-
raram contra Trump durante quatro
anos. O Washington Post, para citar
apenas esse, publicou três ou quatro
colunas por dia inteiramente dedica-
das, ou quase isso, a retratar o presi-
dente sob o aspecto mais aviltante
possível. Destinados, com toda evi-
dência, a fazer sua cota de populari-
dade cair, esses ataques permanentes
foram, no entanto, um tanto benéfi-
cos a Trump, pois fizeram as expec-
tativas descerem a um nível muito
baixo. Eis um homem apresentado
dia e noite aos norte-americanos co-
mo um monstro repugnante, um ho-
mem sem virtudes, uma criatura des-
prezível no último grau, talvez até
um traidor. E se os republicanos con-
seguissem demonstrar que na verda-
de é um sujeito corajoso, com um co-
ração e até com um cérebro?
É o que explica esse momento de
puro triunfo na convenção republi-
cana: a solenidade de encerramento,
quando a ladainha das palavras te-
diosas pronunciadas pelos oradores
sem convicção em uma sala vazia
deu lugar a Ivanka Trump, filha do
presidente, saindo da Casa Branca
entre fileiras de bandeiras america-
nas e sob a ovação de uma multidão
louca e vibrante, em carne e osso e
desprovida de máscara – uma atitude
de desafio perfeitamente chocante
em meio a uma epidemia que havia,
até aquela data, eliminado mais de
150 mil pessoas no país.
Com os cabelos balançando sob o
efeito de uma leve brisa, Ivanka avan-
çou em direção ao microfone coloca-
do no Gramado Sul da Casa Branca e
nos levou a um país das maravilhas
onde Trump – o “presidente do povo”,
o “campeão dos trabalhadores norte-
-americanos”, a “voz dos homens e
mulheres esquecidos deste país” – in-
terpreta o papel de gentil e onde são
as mídias e os políticos “de esquerda”
que assumem os papéis de mentiro-
sos e maldosos. O presidente, nos diz
ela, é amado por seus netos. É amado
pelos “mecânicos estoicos e pelos
trabalhadores do aço” que caem em
lágrimas quando o encontram. É mo-
vido por uma “profunda compaixão
por aqueles que foram tratados com
injustiça”, em particular os detentos.
Imagine como foi duro para ele sacri-
ficar “a economia mais forte e a mais
inclusiva jamais vista na memória do
homem” colocando-a “em pausa pa-
ra salvar vidas norte-americanas”.
Então foi a vez de Trump em pes-
soa subir ao pódio. Disse aceitar a no-
meação de seu partido, garantiu ao
público que é perfeitamente capaz de
sentir emoções humanas normais, em
seguida aplicou-se em desfazer o ima-
ginário maniqueísta de Biden: “A
América não é um país mergulhado
na obscuridade; a América é a tocha
que ilumina o mundo”. Seu rival de-
mocrata possui todos os defeitos dos
quais ele próprio é acusado, prosse-
guiu ele, em especial aquele de ter le-
sado a classe operária. Ele “embolsou
as doações dos trabalhadores, abra-
çou-os e até os beijou” – uma alusão ao
hábito bem conhecido do ex-vice-pre-
sidente de inf ligir a seu público femi-
nino marcas de afeto não desejadas –,
“disse-lhes que compartilhava de sua
dor, então retornou a Washington pa-
ra votar a favor do deslocamento de
nossos empregos para a China ou para
qualquer outro país distante. Tudo o
que você acha que sabia é falso”.
Quanto à classe política de seu
país, é um bando de criminosos, do
primeiro ao último. “Pessoas expe-
rientes em Washington me pediram
que deixasse a China continuar rou-
bando nossos empregos e saqueando
nosso país, mas eu mantive a pro-
messa que fiz ao povo.” São seres de-
moníacos e insultantes, traidores que
só pensam no poder; se você permi-
tir, eles aplicarão um programa de-
mente que consiste em derrubar as
fronteiras do país (“em meio a uma
pandemia planetária!”), fornecer aos
imigrantes ilegais os serviços de ad-
vogados pagos pelo contribuinte, su-
primir o orçamento da polícia, enco-
rajar as revoltas e soltar “400 mil
criminosos nas ruas de seus bairros”.
Segundo o presidente, essas pessoas
de esquerda “querem proibi-los de es-
colher a escola de seus filhos, en-
quanto inscrevem os deles nos me-
lhores estabelecimentos privados do
país. Querem abrir as fronteiras, en-
quanto eles próprios vivem atrás de
grades protegidas nos melhores bair-
ros do mundo. Querem anular o fi-
nanciamento da polícia, enquanto
eles próprios se beneficiam de segu-
ranças armados. Em novembro, de-
vemos virar para sempre a página
dessa classe política que falhou em
todos os sentidos”.
As vociferações de Trump não se
resumem apenas a bufadas delirantes
que podemos desprezar ou das quais
podemos zombar. Por trás de seus de-
vaneios se esconde um fundo de ver-
dade. Ninguém ignora que alguns po-
líticos progressistas são oriundos
sobretudo de classes privilegiadas; a
radicalização ao longo dos anos das
mídias de prestígio, das universida-
des de primeira linha e das institui-
ções culturais frequentadas pelas eli-
tes ilustra esse estado. Um exemplo
entre outros: no fim de agosto, a NPR,
uma rádio para executivos abastados,
recebeu o autor de uma obra chama-
da Em defesa dos saques. Outro exem-
plo: a camiseta de preço exorbitante,
criada por um estilista da moda, na
qual está estampado o slogan “Todos
nós deveríamos ser feministas”.
“Eles me atacam porque eu luto
por vocês”, disse Trump durante seu
discurso. Não, Trump não luta por
nós, mas é inegável que eles o ata-
cam. E se “eles” o detestam, para um
número de eleitores é uma razão sufi-
ciente para apoiá-lo. Ele é o inimigo
de seus inimigos.
Para toda uma parte da América,
esse conf lito está no centro das preo-
cupações, não o Russiagate. Nem seu
desdém pelas normas, nem seu uso
abusivo da força militar, nem mesmo
sua colossal nulidade diante da epi-
demia, cujas consequências se me-
dem em dezenas de milhares de mor-
tos, pesam tanto quando essa luta de
classes singular: Trump contra as ca-
tegorias esclarecidas da alta-Améri-
ca. Estas últimas se uniram contra
ele em um laço tão estreito que a
maior parte de nós jamais havia vis-
to. O ódio que elas lhe dedicam não
faz de Trump um bom presidente –
ele é objetivamente execrável nesse
posto –, mas lhe possibilita alinhar
atrás de si milhões de pessoas que,
sem isso, manteriam distância de um
palhaço dessa espécie.
A animosidade que Trump atrai
constitui praticamente o único
trunfo que lhe resta. Sua balança
econômica estrondosa se tornou
apenas destroços soltando fumaça
ao redor de uma árvore; os bravos
cidadãos empresários que ele amava
celebrar agora assistem à televisão
em seus porões, esperando que se
evapore uma doença mortal que
quase todos os outros países do
planeta controlaram melhor. A rejei-
ção aos progressistas, cheios de
lições de moral, representa sua
última chance às vésperas da eleição
de 3 de novembro.
Por que os norte-americanos des-
prezam os progressistas? A resposta
está sob nossos olhos. Seus líderes
desistiram de falar das classes popu-
lares, mas muitos desses se fecham
naquilo que podemos chamar de a
política da admoestação. Esta última
está onipresente em tempos de Co-
vid. Neste momento, circula um ví-
deo no qual manifestantes do Black
Lives Matter cercam uma mulher que
estava comendo no terraço de um
restaurante; a massa a exorta gritan-
do para que levante o punho em
apoio ao movimento.^7 Episódios si-
milares, nos quais acusações e de-
núncias atingem seu paroxismo, sur-
gem a cada dia nas redes sociais.
Esse sentimento de que o pro-
gressismo se tornou uma política eli-
tista de assédio e difamação ganha
mais espaço a cada dia. Não é exage-
ro dizer que as pessoas veem essa
forma de política com uma mistura
de medo e ódio. Pânico, confusão,
difamação, acusação feroz: é assim
que o mundo está se deteriorando, e
muitos norte-americanos não cul-
pam Trump por isso. Culpam os ri-
cos, culpam os progressistas.
*Thomas Frank é jornalista. Autor, recen-
temente, de The People, No. A Brief His-
tory of Anti-Populism [O povo, não. Uma
breve história do antipopulismo], Metropoli-
tan Books, 2020.
1 Ver, por exemplo, Bob Fitrakis e Harvey Was-
serman, “Will Bush cancel the 2008 elec-
tion? ” [Bush cancelará a eleição de 2008?],
31 jul. 2007. Disponível em: http://www.common-
dreams.com.
2 Elizabeth Drew, “Is this Watergate? ” [Isso é
Watergate?], 6 fev. 2017. Disponível em:
http://www.politico.com.
3 Ler “‘Russiagate’, la débâcle” [“Russiagate”, o
colapso], La Valise Diplomatique, 26 mar.
2020.
4 Umhair Haque, “We don’t know how to warn
you any harder. America is dying” [Não sabe-
mos como alertá-lo mais, a América está mor-
rendo], no site Eudaimonia (www.eand.co),
30 ago. 2020.
5 Michael Anton, “The coming coup? ” [O golpe
futuro?], 9 abr. 2020. Disponível em: http://www.
americanmind.org.
6 Terno tão mal cortado que seu proprietário só
fez milagres contra a epidemia. Em março, por
exemplo, deu ordens aos asilos do Estado de
Nova York para abrigar pacientes de Covid,
sem pensar em testá-los antes para verificar
se ainda estavam na fase contagiosa...
7 Cf. Lauren Victor, “I was the woman surroun-
ded by BLM protesters at D.C. restaurant. He-
re’s why I didn’t raise my fist” [Eu era a mulher
cercada por manifestantes do BLM no restau-
rante em Washington. Eis por que não levantei
meu punho], 4 set. 2020. Disponível em:
http://www.washingtonpost.com.
A animosidade que
Trump atrai constitui
praticamente o único
trunfo que lhe resta
.