Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

2 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


O DILEMA HABITUAL DOS NACIONALISTAS


Falsas


independências


POR SERGE HALIMI*


C


asa Branca, sexta-feira, 4 de se-
tembro de 2020. A cena dura
menos de um minuto.^1 Donald
Trump está sentado em sua ca-
deira majestosa atrás de uma enor-
me escrivaninha, coberta de orna-
mentos dourados e de telefones,
ladeada por duas pequenas mesas
vazias que poderiam ser confundi-
das com extensões da peça princi-
pal. Atrás de uma dessas, o presiden-
te sérvio, Aleksandar Vucic; atrás da
outra, o primeiro-ministro kosovar,
Avdullah Hoti. Trump interpreta o
papel de pacificador. Nitidamente
encantado, ele acaba de obrigar dois
adversários que estavam em guerra
a entrar em acordo em uma região
na qual a União Europeia tinha até
então o controle. Está ainda mais fe-
liz por seu ato – a ponto de estimar
merecer o Prêmio Nobel da Paz – pe-
lo fato de que vinte anos antes foi
uma administração democrata, a de
Bill Clinton, que bombardeou a
ex-Iugoslávia.
Em seguida, de repente, Trump
declara: “A Sérvia se compromete a
abrir um escritório comercial em Je-
rusalém e a transferir para lá sua
embaixada em julho do ano que
vem”. Atrás de sua pequena mesa, o
presidente Vucic parece pego de sur-
presa por um anúncio sem relação
com o assunto da cerimônia (um
simples acordo econômico entre Bel-
grado e Pristina). Ele dá uma olhada
no documento que ia assinar e em
seguida volta-se para seus conse-
lheiros, com ar inquieto. Já era tarde:
Benjamin Netanyahu, aparentemen-
te bem informado, tinha acabado de
felicitá-lo...
Em troca desse mimo dado a
Trump e a seu eleitorado evangélico
dedicado à colonização da Palestina,
Vucic colheu represálias da União
Europeia, pois Belgrado contradisse
assim a política oficial no Oriente
Médio, e a Sérvia mendiga há anos
sua adesão à União Europeia. Um ofi-

cial europeu chegou a ridicularizar
publicamente o olhar arregalado do
presidente sérvio no momento do
anúncio “israelense” de Trump. O
embaixador da Palestina em Belgra-
do declarou sua irritação; o porta-voz
do Ministério das Relações Exteriores
russo compartilhou outra foto do en-
contro em Washington, não muito
mais gentil com Vucic: sentado dessa
vez diante de seu homólogo norte-a-
mericano, imperial, o presidente sér-
vio lembrou um aluno bagunceiro
chamado à diretoria da escola. Três
dias depois, precisou então “esclare-
cer” sua posição sobre o Oriente Mé-
dio: “Estamos fazendo nosso melhor
para nos alinharmos às declarações
da União Europeia. Dito isso, leva-
mos nossos interesses em conta”.
Mais fácil dizer que fazer. Nacio-
nalista sérvio oriundo da extrema
direita, Vucic não tem saudade ne-
nhuma da Iugoslávia.^2 Na época, no
entanto, na cena internacional Josip
Broz Tito defendia seu papel. Quanto
ao Kosovo, se rompeu decididamen-
te suas ligações de subordinação
com a Sérvia, foi para se tornar uma
colônia dos Estados Unidos. No fun-
do, o dilema habitual dos nacionalis-
tas é bem esse: quando rompem com
povos geográfica e culturalmente
próximos, conquistam uma “inde-
pendência” cujo preço é quase sem-
pre a subordinação a potências lon-
gínquas e desdenhosas. Precisam
ora agradar a uma, ora à outra. Auto-
cratas em seu pequeno Estado, vas-
salos assim que saem dele.

*Serge Halimi é diretor do Le Monde
Diplomatique.

1 “Presidente sérvio Vucic perguntou sobre mu-
dar a Embaixada de Israel para Jerusalém”,
Euronews, 7 set. 2020 (com imagens da
cena).
2 Ler Jean-Arnault Derens e Laurent Geslin,
“L’autocrate serbe que Bruxelles dorlote” [O
autocrata sérvio que Bruxelas mima], Le Mon-
de Diplomatique, mar. 2020.

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