24 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
QUEM CONTROLARÁ AS TECNOLOGIAS DA INTERNET
Às vésperas de sua efetivação, a telefonia móvel de quinta geração – o 5G – suscita um
fluxo de questões ligadas ao seu impacto ecológico e sanitário e, fundamentalmente, ao
desenvolvimento tecnológico sem controle. Mas a grande disputa do 5G é travada no
campo geopolítico, com o enfrentamento sempre duro entre Estados Unidos e China
POR EVGENY MOROZOV*
A batalha geopolítica do 5G
E
m 1994, quando a Huawei não
passava de uma pequena vende-
dora de comutadores telefôni-
cos, seu fundador, Ren Zhengfei,
foi conversar com o então presidente
chinês, Jiang Zemin. O ex-engenhei-
ro do Exército convertido para o setor
dos produtos eletrônicos de massa
lançou então a carta patriótica: “As
telecomunicações são uma questão
de segurança nacional. Para uma na-
ção, não ter seus próprios equipa-
mentos nessa área é como não ter
E x é r c i t o”.^1 Esse sábio preceito foi
adotado por outros países, principal-
mente pelos Estados Unidos. Ironica-
mente, hoje são os Estados Unidos
que encaram a Huawei e seu domínio
da tecnologia 5G como uma ameaça à
segurança nacional.
Propriedade de seus empregados,
a empresa é caracterizada pelo atípi-
co sistema de gestão rotativa, pelo
desprezo em relação aos contratos
públicos – considerados “ganancio-
sos” por Zhengfei –, pelo culto aos
valores maoistas e pelo apego à ideia
de inovação nacional para romper a
dependência da China em relação às
empresas estrangeiras “imperialis-
tas”. O grupo gerencia redes em 170
países e emprega mais de 194 mil
pessoas. Desde 2009, ele está entre
os principais players envolvidos no
desenvolvimento da tecnologia 5G,
tanto no setor industrial quanto em
vários organismos internacionais de
padronização. No verão de 2020, a
Huawei destronou a Samsung como
líder mundial na venda de smart-
phones. Considerada uma das em-
presas chinesas mais inovadoras,
sua filial HiSilicon projetou o chip
Kirin, com alguns dos aplicativos de
inteligência artificial mais avança-
dos do mercado.
Parte desse notável sucesso expli-
ca-se pelo inabalável compromisso
da empresa com a área de pesquisa e
desenvolvimento (P&D), à qual dedi-
ca mais de 10% de seus lucros anuais,
o equivalente a mais de US$ 15 bi-
lhões de dólares em 2019 – para 2020,
esperam-se US$ 20 bilhões –, à frente
da Apple e da Microsoft. A título de
comparação, todo o setor automotivo
alemão investiu cerca de US$ 30 bi-
lhões em P&D em 2018. Para além
dessas cifras, a Huawei é um ícone
para a sociedade chinesa: o raro
exemplo de uma empresa que, saindo
da base da cadeia com produtos rudi-
mentares e ultrapadronizados, hoje
fala de igual para igual com a Apple e
a Samsung. Sua trajetória ilustra as
elevadas aspirações do governo para
o setor de tecnologia. Faz um longo
tempo que a China está confinada ao
papel de fábrica de montagem de
produtos estrangeiros, como relem-
bra a humilhante etiqueta colocada
na parte de trás de todos os dispositi-
vos da Apple: “Projetado na Califór-
nia, montado na China”. O destino da
Huawei mostra que uma nova era po-
de se iniciar, com a frase: “Projetado
na China, montado no Vietnã”.
Se outras empresas chinesas se-
guirem esse exemplo, o domínio dos
Estados Unidos na economia mundial
poderá ser seriamente atingido. Em-
bora, no passado, países firmemente
ancorados na esfera de inf luência
norte-americana já tenham passado
por uma fulgurante decolagem eco-
nômica – Alemanha, Japão, Tigres
Asiáticos –, o processo era mais ou
menos dirigido pelos Estados Unidos.
No início do século X XI, os Estados
Unidos começaram a se incomodar
em ver a China alçar-se ao topo por
seus próprios meios, com seus pró-
prios objetivos geopolíticos, enquan-
to eles pareciam cochilar no volante.
O que está em jogo no atual deba-
te sobre o 5G vai muito além da ques-
tão do domínio chinês sobre esse pa-
drão de telefonia. O 5G é a tecnologia
que deverá permitir uma conexão
mais rápida a um maior número de
dispositivos, conectados e interco-
nectados, aproximando as operações
de processamento de dados de sua
origem, ou seja, o usuário final. Mas a
publicidade em torno do assunto
obscurece os muitos obstáculos que
existem para sua aplicação indus-
trial. Para a maioria dos usuários, o
impacto do 5G estará restrito ao au-
mento da velocidade de download e,
talvez, ao advento da internet das
coisas, há muito anunciado.
O EXÉRCITO DAS
TORRADEIRAS CONECTADAS
Claro que o avanço tecnológico das
redes e dos dispositivos exige investi-
mentos colossais, e a batalha para
conquistar o mercado é feroz. Mas a
Huawei e o 5G são apenas a ponta do
iceberg. Por trás deles desenvolve-se
um confronto econômico e geopolíti-
co muito maior, no qual a China tenta
ganhar vantagem sobre os Estados
Unidos. Se o 5G está irritando tanto o
Tio Sam, é porque ele não tem um pe-
so-pesado para colocar no ringue. A
Europa está mais tranquila porque é
a casa de duas companhias bem esta-
belecidas, a Nokia e a Ericsson.
A ofensiva dos Estados Unidos
contra a alta tecnologia chinesa atin-
ge um amplo leque de empresas, da
ZTE (estatal muito ativa no terreno do
5G) à WeChat, passando pelo TikTok
e muitas outras menos conhecidas. A
Huawei, porém, é indiscutivelmente
o alvo principal, pois aos olhos da Ca-
sa Branca ela representa a quintes-
sência de uma China sem escrúpulos,
cujos crimes os Estados Unidos não
se cansam de condenar e punir, em
Hong Kong, em Xinjiang, no Mar da
China Meridional^2 etc., a tal ponto
que Donald Trump se refere à empre-
sa por meio de um daqueles apelidos
de que ele tanto gosta: “A espiã”.
Para o Salão Oval, a Huawei sim-
boliza o golpe baixo que o mundo vê
erroneamente como sucessos comer-
ciais merecidos. Ela viola direitos de
propriedade intelectual, tiraniza par-
ceiros, aproveita a generosa ajuda es-
tatal para derrubar preços e arrasar a
concorrência. Construindo redes de
telecomunicações nos países do Sul, a
companhia os prende em uma relação
de profunda dependência, partici-
pando assim da “diplomacia do endi-
vidamento” exercida pela China, que
se difunde por meio do programa
“Novas Rotas da Seda”. Mais grave, a
Huawei estaria equipando seus pro-
dutos com backdoors, que ajudariam
o regime chinês a expandir suas ativi-
dades de vigilância. Segundo os de-
tratores mais criativos, a empresa logo
poderá virar contra nós as geladeiras e
torradeiras conectadas à rede 5G.
Essas críticas vêm muitas vezes
apoiadas pela menção à Lei Nacional
de Inteligência promulgada pela Chi-
na em 2017, a qual exige que empre-
sas (e cidadãos) cooperem com as
autoridades, fornecendo informa-
ções sempre que solicitado. Outro
motivo de preocupação: a aceleração
da “fusão civil-militar”, um esforço
para tornar mais f luidas as relações
entre o setor de tecnologia e o Exérci-
to – inspirado no exemplo dos Esta-
dos Unidos.^3 A Huawei, por sua vez,
nega categoricamente as acusações
de espionagem, destacando que o
governo chinês não correria o risco
de arruinar sua reputação e confian-
ça internacional.
Como de costume, as alegações do
governo Trump baseiam-se em evi-
dências muito frágeis, ou até inexis-
tentes, o que não o impediu de tentar
juntar à sua cruzada vários países
amigos, com destaque para o Reino
Unido, a França, a Itália e muitas na-
ções do Leste Europeu, “encorajan-
do-os” a banir a Huawei de suas redes
5G – o que é um eufemismo, dada a
intensidade das pressões econômicas
e diplomáticas exercidas pelo Depar-
tamento de Estado por meio de suas
embaixadas. A mesma coisa se passa
em todos os continentes. Após um in-
tenso lobby do secretário de Estado
norte-americano, Mike Pompeo, o
governo chileno decidiu excluir a
Huawei de seu projeto de cabo sub-
marino transpacífico. Na Índia, onde
a Huawei está muito presente, o pri-
meiro-ministro Narendra Modi joga
com a escolha ou não da companhia
chinesa como instrumento de repre-
sália contra a China, após violentos
confrontos de fronteira. Embora ne-
nhuma proibição oficial tenha sido
anunciada, Nova Délhi estaria consi-
derando recorrer a uma empresa na-
cional, a Reliance Industries.
O Reino Unido, embora um tanto
entorpecido nestes tempos de Brexit,
desferiu em julho um golpe contra a
companhia chinesa, exigindo que as
operadoras de telefonia móvel do
país removessem todos os equipa-
mentos Huawei de sua rede até 2027.
A decisão causou surpresa, pois o
país é um ponto central na estratégia
europeia do grupo chinês, cuja sede
regional está instalada em Londres.
Também foi no Reino Unido que a
Huawei inaugurou, em 2010, em par-
ceria com os serviços de inteligência
britânicos, o Centro de Avaliação de
Segurança Cibernética Huawei (Hua-
wei Cyber Security Evaluation Cen-
tre, HCSEC), responsável por anali-
sar e corrigir falhas de segurança
identificadas em suas redes. Mas es-
sas boas relações não pesaram muito
diante das intimidações dos Estados
Unidos e das críticas do Partido Con-
servador, em cujas fileiras se formou
.