Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23


relações homens-mulheres. No en-
tanto, embora fossem claramente
menos numerosas, não podemos ne-
gar a evidência de que existiam socie-
dades nas quais as relações entre os
sexos eram equilibradas (entre os
San, da África do Sul, por exemplo).
“O matriarcado nunca existiu!” Li-
da na edição de novembro de 1992 da
revista L’Histoire, essa fórmula lapidar
nos interroga sobre as razões da recu-
sa de muitos pesquisadores em cogi-
tar a hipótese de que a dominação
masculina, o sistema patriarcal, não
seja original, mas tenha se instaurado
de modo progressivo após mudanças,
talvez de ordem econômica, que mo-
dificaram a estrutura social das co-
munidades de caçadores-coletores
nômades. A acumulação de bens –
quase inexistente nas sociedades pa-
leolíticas –, favorecida pelo sedenta-
rismo e pela domesticação de plantas
e animais, teria ocasionado o surgi-
mento de uma nova atividade, a de
protegê-los, função que teria sido atri-
buída aos homens, que, supõe-se, se-
riam mais fortes em termos físicos.
Tornados aos poucos detentores de
colheitas e de gado, os homens teriam
instituído a filiação patrilinear a fim
de assegurar a transmissão dos bens a


seus filhos. A apropriação e o controle
dos filhos, percebidos pela generali-
zação do direito paternal, teriam apa-
recido no seio de sociedades social-
mente organizadas, segundo a tese de
Claude Lévi-Strauss em Les structures
élémentaires de la parenté (As estrutu-
ras elementares do parentesco, 1949).
Essa substituição de filiação teria
conduzido, em um prazo mais longo
ou mais curto, à aparição do sistema
patriarcal. É, portanto, bem provável
que as mudanças econômicas e so-
ciais observadas no Neolítico tenham
modificado de modo profundo as re-
lações entre homens e mulheres. Te-
riam marcado, sem dúvida, o início
da era patriarcal, como escreveu a fi-
lósofa Olivia Gazalé: “O primeiro a ter
revertido a ordem sexual não foi a
mulher, e sim o homem, quando colo-
cou fim ao mundo misto – no qual os
direitos e as liberdades das mulheres
eram bem mais estendidos e em que o
feminino era respeitado e divinizado


  • para construir um mundo novo, o
    mundo viriarcal (baseado na virilida-
    de), no qual a mulher viria a ser infe-
    riorizada, presa e desprovida de todos
    os seus poderes. No alvorecer dessa
    nova civilização, começou o grande
    relato da superioridade viril, que viria
    a ser consolidada, século após século,
    pela mitologia (pela imagem e pelo
    símbolo), pela metafísica (pelo con-
    ceito), pela religião (pela lei divina) e
    pela ciência (pela fisiologia)”.^7


EMERGÊNCIA DA ELITE GUERREIRA
A partir de 1884, Friedrich Engels
identificou a substituição progressiva
da filiação materna pela filiação pa-
terna como uma das causas da sujei-
ção das mulheres; para ele, a inversão
do direito materno foi “a grande der-
rota histórica do sexo feminino”.^8
Mais de 120 anos depois, Emmanuel
Todd sublinhou também que, embo-
ra o princípio patrilinear tenha favo-
recido o desenvolvimento das formas
familiares complexas que teriam se
propagado, por conseguinte, por qua-
se toda a Eurásia (o que subentende
que teria existido antes outro princí-
pio), ele teve por contrapartida um
rebaixamento do status da mulher e,
como consequência, um menor papel
das mães na transmissão cultural.
Desse modo, a raridade dos regimes
matriarcais – ao mesmo tempo ma-
trilineares e matrilocais (no qual o
“marido” vem morar com a família de
sua “mulher”) – se explicaria pela do-
minação masculina universal. A su-
bordinação das mulheres, que é uma
forma de violência, seria consequên-
cia da divisão sexual do trabalho.
Nas sociedades paleolíticas, ao
procriar e criar seus filhos pequenos,
as mulheres tinham uma função pri-
mordial na perenidade do clã. Como
era impossível saber com certeza o

verdadeiro pai do recém-nascido, a
filiação matrilinear parecia mais que
provável. Participando de muitas ati-
vidades, elas tinham um real papel
econômico e um status social prova-
velmente equivalente ao dos homens,
talvez até mais elevado no seio da es-
fera doméstica e simbólica, tendo em
vista o lugar central que ocupam as
representações femininas na arte pa-
leolítica. Embora possamos de ma-
neira razoável pensar que nessas so-
ciedades as relações entre os sexos
eram equilibradas, não temos na
atualidade nenhum indício que per-
mita concluir sobre a existência de
sociedades matriarcais, subentendi-
das como dominadas pelas mulhe-
res... ou patriarcais. É possível que a
substituição progressiva da filiação
maternal pela filiação paternal tenha
ocorrido durante o Neolítico, mas
não em todo lugar, pois ainda exis-
tem sociedades matrilineares em al-
gumas regiões do mundo.
Bem no início do Neolítico, a or-
ganização socioeconômica das pri-
meiras sociedades agrícolas parecia
se elaborar com as mulheres.^9 Agri-
cultoras, elas estariam na origem da
domesticação de plantas e de ferra-
mentas agrícolas, como a enxada e as
mós para triturar os grãos. Uma mu-
dança na organização social apare-
ceu em torno de 6 mil anos antes de
nossa era, período marcado por uma
explosão demográfica local ligada a
uma abundância de comida (atesta-
da pela presença de numerosos silos
de grãos) e a uma expansão da seden-
tarização (aparição dos primeiros vi-
larejos). Com o desenvolvimento da
criação de gado e o domínio de novas
técnicas agrárias, os homens teriam
de maneira progressiva substituído
as mulheres nos trabalhos ligados à
agricultura. A exploração dos ani-
mais para a lã ou o leite teria desenca-
deado uma delimitação maior das
mulheres ao espaço doméstico. Com
o crescimento das riquezas (campo
ou pastagem, gado, reservas alimen-
tares), eles teriam ganho um lugar
cada vez mais importante no seio das
comunidades. Tais mudanças teriam
remodelado as relações sociais, fa-
zendo aparecer elites e castas, como
a dos guerreiros, e gerado uma divi-
são sexual das tarefas mais marcada,
bem como uma generalização da re-
sidência patrilocal (a mulher vive
com a família de seu “cônjuge”) e da
filiação patrilinear.
Essas transformações, que revo-
lucionaram o lugar das mulheres na
sociedade, são perceptíveis a partir
de 5 mil anos antes de nossa era na
composição do mobiliário funerário
(mais sexuado e menos diversificado
nas tumbas femininas) e no estado
de saúde dos esqueletos femininos
revelado. Nota-se um aumento não

apenas de doenças ligadas a traba-
lhos duros, ao porte de cargas pesa-
das e a gestações repetidas, mas tam-
bém a carências, em razão de uma
alimentação subproteica (à base em
sua maior parte de féculas e vegetais,
algo atestado por um número mais
significativo de cáries) e de trauma-
tismos causados por violências. Mas
não é o caso de todas as mulheres.
Em muitas tumbas, as defuntas estão
ricamente ornadas e apresentam
poucas patologias e traumatismos.^10
A situação das mulheres desse perío-
do parece, portanto, variar em fun-
ção de sua posição social.
Durante mais de um século e
meio, as interpretações feitas dos
vestígios arqueológicos contribuí-
ram fortemente para tornar as mu-
lheres pré-históricas invisíveis, em
especial diminuindo sua importân-
cia na economia. As novas descober-
tas trazem um olhar novo sobre elas,
cujo papel na evolução se revela tão
importante quanto o dos homens.

*Marylène Patou-Mathis é diretora de
pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa
Científica e do Departamento do Homem e
do Meio Ambiente do Museu Nacional de
História Natural. Autora de L’homme préhis-
torique est aussi une femme. Une histoire
de l’invisibilité des femmes (O homem pré-
-histórico também é uma mulher. Uma histó-
ria da invisibilidade das mulheres), a ser lan-
çado pela editora Allary em 1º de outubro de
2020, do qual este texto foi extraído.

1 Piotr Efimenko, “La société primitive” [A socie-
dade primitiva] (1953). In: Claudine Cohen,
La moitié “invisible” de l’humanité préhistori-
que [A metade “invisível” da humanidade pré-
-histórica], Metacolloque Mnemosyne, Lyon,
IUFM, 2005.
2 Cai Hua, Une société sans père ni mari. Les
Na de Chine [Uma sociedade sem pai nem
marido. Os Na da China], PUF, Paris, 1997.
3 Ernest Borneman, Le Patriarcat (Perspectives
critiques) [O patriarcado (perspectivas críti-
cas)], PUF, 1979.
4 Marijas Gimbutas, Bronze Age Cultures of
Central and Eastern Europe [Culturas da Era
do Bronze da Europa central e oriental], Mou-
ton & Co., Haia/Londres, 1965.
5 Cynthia Eller, The Myth of Matriarchal Prehis-
tory. Why an Invented Past Will Not Give Wo-
men a Future [O mito da pré-história matriar-
cal. Por que um passado inventado não dará
um futuro às mulheres], Beacon Press, Bos-
ton, 2000.
6 Emmanuel Todd, L’origine des systèmes fami-
liaux, tome I: L’Eurasie [A origem dos sistemas
familiares, tomo I: A Eurásia], Gallimard, Pa-
r i s , 2 011.
7 Olivia Gazalé, Le Mythe de la virilité [O mito da
virilidade], Robert Laffont, Paris, 2017.
8 Friedrich Engels, L’origine de la famille, de la
propriété privée et de l’État [A origem da famí-
lia, da propriedade privada e do Estado], 1884.
9 Jacques Cauvin, Naissance des divinités,
naissance de l’agriculture: la révolution des
symboles au néolithique [Nascimento das di-
vindades, nascimento da agricultura: a revolu-
ção dos símbolos no Neolítico], Flammarion,
Paris, 1998.
10 Anne Augereau, La condition des femmes aux
néolithiques. Pour une approche du genre
dans le Néolithique européen [A condição
das mulheres no Neolítico. Por uma aborda-
gem do gênero no Neolítico europeu], defesa
de tese de habilitação, Instituto Nacional de
História da Arte, 28 jan. 2019.

© Bruna Maia

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