OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27
UM SISTEMA DE PENSÕES DESCONECTADO DAS CARREIRAS SERIA POSSÍVEL?
Contra a opinião das organizações de trabalhadores e empregadores, o presidente
Emmanuel Macron está obstinado em reformar a Previdência. A uniformização,
o modelo proposto, implica a elevação da idade da aposentadoria integral e arrisca
levar empobrecimento para a maioria. A reflexão sobre um verdadeiro modelo
universal passa por um caminho bem diferente
POR ANNE DEBREGEAS*
Por uma aposentadoria
realmente universal
N
a ampla mobilização do início
de 2020 contra o projeto de re-
forma da Previdência na Fran-
ça, as reivindicações se pauta-
ram majoritariamente no sistema
existente. Visando à manutenção do
nível de vida dos aposentados, a de-
manda era de que o valor das pensões
fosse melhor ou ao menos igual que
último salário recebido. Dessa forma,
valida-se a reprodução das desigual-
dades do mundo do trabalho para
aqueles e aquelas que o deixam.
No momento em que nosso mode-
lo de sociedade é balançado pela cri-
se da Covid-19, diversas iniciativas
nos chamam a redefinir os contornos
de um mundo sustentável. Não é o
momento de considerar substituir a
lógica contributiva atual da aposen-
tadoria por um novo direito univer-
sal, independentemente do nível e da
duração da cotização? Todo ser hu-
mano poderia dispor de uma pensão
idêntica a partir de certa idade. Esse
princípio estaria de acordo com o do
sistema de saúde público ou dos ser-
viços que oferecem a cada um os
mesmos serviços, qualquer que seja o
nível da cotização associado a seu sa-
lário. Para cogitar a viabilidade e o
interesse de uma verdadeira aposen-
tadoria universal, convém encontrar
as melhores respostas para as ques-
tões legítimas que surgem.
Qual poderia ser o valor dessa apo-
sentadoria única? Ele deveria depen-
der evidentemente de escolhas demo-
cráticas. Podemos imaginar, por
exemplo, que ele seja fixado em 2 mil
euros líquidos por mês, ou seja, ligei-
ramente menos do que a renda média
por adulto da França (2,2 mil euros lí-
quidos hoje, fora rendas de capital).
Esse valor, claramente acima da apo-
sentadoria média atual (1.444 euros
líquidos por mês), significaria um au-
mento das pensões para mais de 80%
dos 17,2 milhões de aposentados
atuais (após deduções das cotizações
sociais, mas antes dos impostos).^1
Uma aposentadoria única não re-
solveria todas as desigualdades, entre
as quais as ligadas ao patrimônio, às
rendas de capital ou à responsabilida-
de financeira sobre crianças, desi-
gualdades essas que deveriam ser re-
guladas pelo imposto, garantia de
serviços públicos de qualidade. A par-
tir de que idade? Esticar o fim da ativi-
dade para além dos 60 anos priva as
pessoas dos melhores anos da apo-
sentadoria, já que a esperança de vida
com boa saúde é de 64 anos. O mundo
do trabalho, inclusive, rejeita boa par-
te dos idosos, que têm dificuldades
em encontrar empregos em seus últi-
mos anos de atividade. Além disso,
elevar a idade priva mecanicamente
os mais jovens do acesso ao trabalho:
mais de 1 milhão de empregos são
ocupados por pessoas com mais de 60
anos, um número que deve aumentar.
Para responder ao desemprego em
massa é necessária uma partilha do
trabalho, já que o crescimento perpé-
tuo não é possível nem desejável de
um ponto de vista ecológico.
Quanto custaria essa aposentado-
ria e como financiá-la? Uma aposen-
tadoria de 2 mil euros líquidos para
todos a partir da idade legal atual de
62 anos criaria a necessidade de um
financiamento suplementar de cerca
de 80 bilhões de euros, ou seja, 3,4%
do PIB. Esse número aumentaria pa-
ra 110 bilhões de euros, ou seja, 4,7%
do PIB, no caso de uma aposentado-
ria de 2 mil euros líquidos a partir dos
60 anos. O esforço necessário para
essa revolução social representa um
aumento de cerca de 10% em média
das deduções obrigatórias, o que po-
deria ser feito nos salários mais ele-
vados, introduzindo, por exemplo,
uma progressão nas cotizações e co-
brando mais das rendas de capital.
Lembremos que a introdução do
“desconto único” em 2018 estipulou
um teto para o imposto de renda do
capital em 12,8% (fora taxas sociais),
muito abaixo da última fatia de im-
posto de renda, fixada em 45%. Esse
esforço financeiro estabeleceria uma
partilha da riqueza produzida, o que
parece mais legítimo do que conde-
nar os aposentados a um empobreci-
mento progressivo ao estipular um
teto das aposentadorias em 14% do
PIB, como considerava fazer o gover-
no antes da crise sanitária.
DIREITO AO REPOUSO
Não existe um risco de incitar os “ri-
cos” a capitalizar durante sua vida
ativa para compensar a alta diminui-
ção de sua renda na aposentadoria?
Não podemos ser ingênuos; os mais
privilegiados já capitalizam de diver-
sas maneiras: aplicações na Bolsa,
planos de aposentadoria privada,
imóveis etc. Nivelar as rendas entre o
período de atividade e o período de
aposentadoria não é ilegítimo nem
problemático, a partir do momento
em que os fundos de pensão são proi-
bidos. A poupança poderia assim ser
orientada para um financiamento
com baixas taxas de investimentos
públicos – para a transição ecológica,
por exemplo –, em vez de se dirigir a
produtos especulativos altamente re-
muneradores, que não respondem a
uma necessidade real e infelizmente
são frequentemente não taxados. Es-
sa orientação da poupança poderia
ser feita por uma via regulamentar,
por exemplo, ao impor uma porcen-
tagem mínima de aplicações finan-
ceiras no financiamento de investi-
mentos públicos e ecológicos.
Tal proposta poderia ser aceita?
Ela deve encontrar retorno positivo
junto a 80% dos futuros aposentados
que veriam sua pensão aumentar em
relação ao sistema atual. Mesmo para
os outros, essa aposentadoria, asso-
ciada a um serviço público de quali-
dade, ofereceria direito ao repouso
garantido, quaisquer que fossem as
dificuldades da vida, sem medo de
envelhecer na precariedade financei-
ra e sem medo por seus filhos, paren-
tes e próximos. Em troca de qual re-
núncia? A capacidade de consumir
mais em um planeta com recursos li-
mitados? Hoje, muitos, em particular
entre os mais jovens, têm uma cons-
ciência aguda da necessidade de
compartilhar para enfrentar a crise
social e ambiental que surge diante
de nós. Além do mais, a instabilidade
do sistema os leva a considerar a apo-
sentadoria como uma miragem. A le-
gibilidade e a simplicidade de uma
aposentadoria única para todos favo-
receriam a recuperação de uma ade-
são e de uma confiança em nosso
destino coletivo.
*Anne Debregeas é engenheira de pes-
quisa da Électricité de France e porta-voz
da federação Sud-énergie.
1 Fonte: Ministério das Solidariedades e da
Saúde, Direção de Pesquisa, Estudos, Avalia-
ção e Estatísticas (Drees), jul. 2019.
Franceses foram às ruas contra o projeto de reforma da Previdência
© Jeanne Menjoulet
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