Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29


dade entre cristãos e muçulmanos,
estes últimos apoiados com circuns-
pecção pelos movimentos armados
palestinos no Líbano.
Fuad Chehab falava com frequên-
cia sobre aqueles a que chamava de
“parasitas”, os políticos inescrupulo-
sos empenhados em extrair do Esta-
do tudo o que podiam. No plano in-
ternacional, o presidente construiu
sua política externa tecendo boas re-
lações com o presidente egípcio Ga-
mal Abdel Nasser. Isso só poderia
exacerbar a ira da burguesia empre-
sarial cristã, que via no rais, pan-ara-
bista e socialista, o diabo em pessoa.
Diante do ímpeto reformista e do de-
sejo presidencial de construir um Es-
tado forte, a palavra de ordem dos
círculos cristãos conservadores resu-
mia-se em uma frase nada sutil: “A
força do Líbano está em sua fraque-
za”. A burguesia muçulmana, por sua
vez, exigia mais direitos na nova re-
pública independente, apoiando, via
de regra, os movimentos armados
palestinos, a fim de pressionar a bur-
guesia cristã intransigente. Tais mo-
vimentos se desenvolveram no Líba-
no graças a essa fraqueza, mas
também ao fato de que uma parte im-
portante desses fedayin fora expulsa
da Jordânia em setembro de 1970.^3
Um contemporâneo de Fuad
Chehab merece ser mencionado, pelo
acerto de suas opiniões. Trata-se de
Michel Chiha (1891-1954), que, embo-
ra banqueiro e apologista do libera-
lismo econômico, foi um ardente de-
fensor da diversidade comunitária e
desde cedo alertou sobre os riscos


que o Líbano corria em decorrência
da política israelense concernente a
seu país e aos palestinos. Sua coleção
de artigos sobre a Palestina continua
sendo uma obra-prima de lucidez e
clarividência.^4 Chiha percebeu muito
bem o conf lito existencial entre Is-
rael, edificado sobre o exclusivismo
comunitário, e o Líbano, construído,
ao contrário, sobre a gestão do plura-
lismo pacífico.^5
No entanto, em alguns círculos
maronitas, bastante marginais, sur-
giu a ideia de que, se os judeus na Pa-
lestina tinham seu Estado, por que os
cristãos não deveriam ter o deles? Já
que cristãos e judeus eram minoritá-
rios, por que não se unir contra a
maioria muçulmana? Esse ponto de
vista ressoava, sem sequer o saber, to-
da uma literatura israelense que pre-
conizava a desestabilização do Líba-
no e a necessidade de dividi-lo entre
cristãos e muçulmanos. O resultado
disso sabemos qual foi: primeiro a to-
mada de Israel sobre parte do sul do
Líbano em 1978, depois a invasão, no
verão de 1982, que levou o Exército is-
raelense a Beirute, onde foram perpe-
trados os massacres de civis palesti-
nos nos campos de Sabra e Chatila por
milicianos falangistas, sob o olhar
cúmplice dos soldados israelenses.
Bashir Gemayel, filho do líder do par-
tido falangista Pierre Gemayel, foi
eleito presidente do Parlamento liba-
nês cercado por tanques israelenses,
em seguida assassinado, alguns dias
depois, na explosão misteriosa que
destruiu a sede de seu partido. Seu ir-
mão, Amin Gemayel, o sucedeu, co-
mandando o bombardeio dos subúr-
bios ao sul de Beirute, de maioria xiita.
Foi nesse contexto caótico que se efe-
tuou a evacuação dos combatentes
palestinos sob o controle de uma For-
ça Multinacional – que depois foi víti-
ma de vários ataques terroristas.
O fim do ciclo de guerras interco-
munitárias em 1990 não curou o Lí-
bano de suas fragilidades originais e
de sua incapacidade de construir um
Estado que seja digno desse nome.
Pior, a chegada ao poder, em 1992, do
primeiro-ministro Rafiq Hariri – em-
presário protegido pelo rei da Arábia
Saudita que ficou no cargo até pou-
cos meses antes de morrer em um
atentado, em 2005 – introduziu o país
em um regime econômico rentista,
como se ele dispusesse de grandes re-
cursos. Foram assinados acordos de
livre-comércio com muitos países,
com repercussões negativas para a
capacidade produtiva do país, tanto
industrial como agrícola. Um regime
de câmbio fixo atrelando a libra liba-
nesa ao dólar, bem como níveis anor-
malmente elevados das taxas de ju-
ros sobre os títulos do tesouro em
moeda local logo resultaram em um
danoso acúmulo de dívida nessa

moeda. Isso facilitou o rápido enri-
quecimento da classe rica do país,
que se endividou em dólares, apro-
veitando as baixas taxas de juros pa-
ra fazer aplicações de altíssimos ren-
dimentos em libras libanesas.
Nesse período, os moradores das
mais belas áreas da capital foram de-
sapropriados em benefício da cons-
trutora Solidere, que transformou o
icônico centro da cidade em uma có-
pia vulgar das cidades de vidro e aço
do Golfo. Em quinze anos, Beirute, já
devastada por tantos anos de guerra,
sofreu um verdadeiro genocídio ar-
quitetônico, como evidencia a cons-
trução de uma enorme mesquita em
estilo turco rompendo a beleza ar-
quitetônica da antiga Praça dos Már-
tires, também conhecida como Praça
dos Canhões.

A BOLHA DA ELITE
A gestão de Hariri sobre a economia
libanesa foi diretamente responsável
por seu enfraquecimento. Embora te-
nha uma média de 6%-7%, o cresci-
mento nunca chegou a níveis compa-
tíveis com um período de reconstru-
ção de pós-guerra. E o governo não
teve nenhuma preocupação com a
justiça tributária, estabelecendo ta-
xas de imposto de renda escandalo-
samente sujeitas a um teto de apenas
10%, quando a situação exigia um
imposto especial sobre as grandes
fortunas reunidas durante a guerra.
Apesar da prosperidade do setor fun-
diário, ele logo passou a enfrentar di-
ficuldades financeiras, pois a pou-
pança libanesa era drenada pelas al-
tas taxas de juros sobre depósitos
bancários ou títulos da dívida públi-
ca. Foi durante o período Hariri que
muitos jovens talentos deixaram o
país, enquanto outros puderam con-
cluir seus estudos superiores na Eu-
ropa e nos Estados Unidos graças a
um programa que ofereceu milhares
de bolsas estudantis – um maná que
explica por que Rafiq Hariri e seu fi-
lho, Saad, continuam populares jun-
to a uma parte da população.
Hoje, porém, a economia libanesa
corre o risco de se dilacerar. O conge-
lamento de facto dos depósitos ban-
cários, medida totalmente inconsti-
tucional, atesta a existência de um
regime de “bancocracia” único no
mundo e totalmente contrário aos
direitos humanos. É o resultado de
uma gestão lamentável do setor ban-
cário e do banco central libanês,
conduzida pelo mesmo dirigente por
quase trinta anos – Riad Salamé foi
nomeado em 1º de agosto de 1993,
por decisão de Rafiq Hariri, cuja for-
tuna ele administrava no banco de
investimentos Merrill Lynch. Hoje, a
desvalorização da libra libanesa e a
multiplicação das taxas de câmbio
arruinaram grande parte da classe

média, com mais de 50% da popula-
ção abaixo da linha de pobreza. Há
grandes riscos de redução da expec-
tativa de vida no Líbano.
Já a casta política que administra
o país está sempre envolvida em ma-
nobras comunitaristas, vivendo em
uma bolha, como se a economia
continuasse funcionando normal-
mente, esquecendo que há um povo
que sofre. E certamente não são as
exigências de reforma do FMI que
serão capazes de sanear e dinamizar
a atividade econômica. Já está pre-
vista, aliás, uma série de privatiza-
ções de empresas públicas e proprie-
dades fundiárias. A todos esses
infortúnios veio se somar a gigantes-
ca explosão do dia 4 de agosto, que
assolou a área leste da capital. O Lí-
bano jamais havia sofrido um desas-
tre de tal magnitude.
Nesse contexto, o país precisa de
reformas, sendo as mais urgentes
aquelas ligadas à necessidade de ra-
cionalizar as despesas orçamentá-
rias, artificialmente inf ladas por nu-
merosos subsídios de natureza
clientelista, de melhor gerir o patri-
mônio fundiário do Estado e das co-
letividades locais, de instituir um im-
posto de renda unificado em vez de
vários impostos por categoria, além
de um imposto sobre grandes fortu-
nas, e de preservar o poder de com-
pra das aposentadorias. Mas tam-
bém, e principalmente, o país precisa
apoiar os setores produtivos da eco-
nomia, dar um fim à inf lação galo-
pante e apoiar as classes mais pobres
da população com o aumento da as-
sistência social. Para concluir, uma
medida de notável economia seria fe-
char vários fundos independentes de
indenização que não têm mais ne-
nhuma razão de ser, como o fundo
destinado aos deslocados da guerra
de 1975-1990 ou aquele dedicado aos
deslocados do sul do Líbano após a
invasão israelense de 1982.

*George Corm é professor universitário,
ex-ministro das Finanças do Líbano e autor
de Le Liban contemporain. Histoire et so-
ciété [O Líbano contemporâneo. História e
sociedade], La Découverte, Paris, 2012.

1 L’Orient, Beirute, 10 mar. 1949.
2 Jean-Marc Fevret, 1948-1972: Le Liban au
tournant. L’anémone pourprée [1948-1972: o
Líbano em transformação. A anêmona púrpu-
ra], Geuthner, Paris, 2011. E cf. Stéphane
Malsagne, Louis-Joseph Lebret, chronique de
la construction d’un État. Journal au Liban et
au Moyen-Orient (1959-1964) [Louis-Joseph
Lebret, crônica da construção de um Estado.
Diário no Líbano e Oriente Médio (1959-
1964)], Geuthner, 2014.
3 Ler Alain Gresh, “Mémoire d’un septembre
noir” [Memórias de um setembro negro], Le
Monde Diplomatique, set. 2020.
4 Michel Chiha, Palestine, Éditions du Trident,
Beirute, 1947.
5 Ler Yaacov Sharett, “L’État juif et l’intégrité du
Liban” [O Estado judeu e a integridade do Lí-
bano], Le Monde Diplomatique, dez. 1983.

© Stephane Lemouton/Pool via REUTERS

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