Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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30 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


O que significa tratar


os animais com humanidade?


KARL KRAUS, ROSA LUXEMBURGO E O DESASTRE DA “GRANDE GUERRA”


“N


o dia 1º de agosto de 1914”,
escreve o satírico vienen-
se Karl Kraus em sua re-
vista Die Fackel [A Tocha],
“ouvi um grito: ‘Sempre em frente,
rumo à glória, marchamos!’. Eu me
envergonhava da minha rabugice,
pois já naquele momento sabia de
maneira muito precisa que chegaria o
tempo do: ‘Precisamos sair dessa!’.
Mas eu era simultaneamente tão oti-
mista que fixei uma data para a ex-
pressão desse desejo, que não poderia
deixar de ser sentido já em 1º de agos-
to de 1915, ou em 1º de agosto de 1916,
e não em 1º de agosto de 1917. No en-
tanto, em tais casos não é possível
trabalhar com exatidão matemática,
apenas com exatidão apocalíptica.”^1
Kraus expressa aqui sua convicção
de que apenas um esforço imaginati-
vo excepcional, como aquele exempli-
ficado pelo pensamento apocalíptico,
seria capaz de compensar a total au-
sência de imaginação que tornou pos-
sível o desastre e de permitir com-
preender, já que não pudemos
impedir, o acontecido e suas decor-
rências. É a linguagem do apocalipse
e às vezes até o próprio texto do Apo-
calipse que Kraus adota naturalmente
para falar não apenas da perda de vi-
das humanas e do sofrimento inima-
ginável causado pela guerra, mas
também da destruição que a combi-
nação entre o progresso da técnica e o
poder desmedido do dinheiro, a bus-
ca da rentabilidade e do lucro a qual-
quer custo começou a inf ligir ao meio
ambiente e à natureza. As duas coisas,
a onipotência assassina da técnica e a
tirania do dinheiro-rei, estavam,
aliás, a seu ver, mais do que nunca li-
gadas uma à outra, visto que, como
ele diz, em um primeiro momento os
mercados foram transformados em
campos de batalha, e depois os cam-
pos de batalha foram transformados
em mercados a serem conquistados e
explorados por industriais e vendedo-
res de armas. Um vínculo desse tipo
pode parecer pouco evidente à pri-
meira vista, mas Kraus não tem ne-
nhuma dúvida a respeito da “existên-

cia de um nexo causal entre sangue e
lucro”, cuja consequência foi o fato de
milhares de seres humanos terem si-
do condenados a morrer essencial-
mente em nome do benefício e da
prosperidade de uns poucos.
Os atentados à dignidade, aos di-
reitos e à vida humana, cujo valor e
preço a guerra conseguiu rebaixar de
maneira formidável, não podem, em
nenhum caso, ser realmente separa-
dos do desprezo com que a humani-
dade atual se habituou a tratar o
meio ambiente em geral e os animais
em particular. Dois aspectos diferen-
tes do mesmo processo de desuma-
nização, portanto de autodestruição,
no qual a humanidade embarcou.

“NINGUÉM TEM PIEDADE DE NÓS”
Assim, não é por acaso que o último
monólogo do Rabugento (Os últimos

dias da humanidade, ato V, cena 54)
traz uma questão que poderíamos
ser tentados a considerar secundá-
ria, mas que, para Kraus, pelo con-
trário, era de crucial importância: a
da destruição causada às f lorestas
pelas quantidades cada vez mais
consideráveis de papel necessário
para a fabricação de jornais. Essa
conjunção, de significado sinistro,
entre o aumento desproporcional da
imprensa, que nada parecia capaz de
conter, e a redução da f loresta sem-
pre teve para ele um caráter simbóli-
co, altamente representativo do que
estava prestes a acontecer, com seu
consentimento e até por sua própria
culpa, à humanidade.
O episódio evocado no monólogo
do Rabugento pertence mais uma vez
à categoria do inconcebível, cuja
enormidade não impediu, no entanto,

de se realizar: “Desejando estabele-
cer o tempo exato necessário para
que uma árvore da f loresta se trans-
formasse em jornal, um produtor de
papel do Harz teve a ideia de realizar
um experimento muito interessante.
Às 7h35, mandou cortar três árvores
no bosque vizinho e, após serem des-
cascadas, mandou que fossem trans-
portadas para a fábrica de celulose”
(Os últimos dias da humanidade). A
resposta à sua pergunta foi a seguin-
te: a sequência de operações necessá-
rias para passar da árvore ao jornal
impresso podia realizar-se tão rapi-
damente que às 11 horas da manhã o
jornal já estava à venda na rua. “Fo-
ram necessárias, portanto”, conclui o
anúncio lido pelo Rabugento, “apenas
3 horas e 25 minutos para que o públi-
co pudesse ler as últimas notícias em
um material proveniente das árvores

À margem dos combates contra a covardia jornalística, as capitulações da social-democracia e a militarização,
o satírico vienense Karl Kraus (1874-1936) desenvolveu uma reflexão sobre o tratamento dos animais na
Primeira Guerra Mundial. Um século depois, seu eco ressoa na voz daqueles que denunciam os maus-tratos
animais, elevados, em tempos de paz, a uma escala industrial

POR JACQUES BOUVERESSE*

© Flávia Pereira

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