Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31


em cujos galhos, na mesma manhã,
os pássaros ainda cantavam.”
Quando abordamos a questão da
estreita relação que, aos olhos do satí-
rico, existe entre a desumanização do
ser humano e a redução da natureza
ao estatuto de simples instrumento
que o homem tem o direito de usar co-
mo bem entende, é quase impossível
não mencionar também as notáveis
afinidades que existiram, sobre esse
ponto, entre sua atitude e a de Rosa
Luxemburgo. Kraus havia, como ele
explica, tropeçado enquanto lia o Ar-
beiter-Zeitung, em uma das cartas que
ela escreveu em 1917 de Breslau, onde
estava presa, a Sonia Liebknecht, pu-
blicadas três anos depois. Claro que o
que ele apreciou e admirou em parti-
cular nessa carta não foi apenas a ex-
cepcional qualidade literária que ali
se revela e cuja importância para ele
não tinha nada de surpreendente,
mas também o profundo amor pela
natureza ali expresso, bem como a
compaixão diante do sofrimento que
o ser humano é capaz de inf ligir em sã
consciência a alguns dos outros habi-
tantes que nela vivem, em particular
aos animais que são obrigados a ser-
vi-lo, às vezes reduzidos pura e sim-
plesmente à escravidão.
Para Rosa Luxemburgo, como pa-
ra Kraus, a ligação entre o que ela des-
creve em sua carta e o que a guerra
engendrou – ou talvez simplesmente
revelou – é mais ou menos óbvia.
Quando a indignada observadora
pergunta ao soldado, que brutaliza fe-
rozmente um animal exausto obriga-
do a arrastar uma carga claramente
pesada demais para suas forças, se ele
não tem nenhuma piedade dos ani-
mais, a resposta fala por si: “Ninguém
tem piedade de nós, humanos”, res-
pondeu ele com um sorriso mau, e co-
meçou a bater mais forte.^2 O que se
expressa aqui é a propensão que facil-
mente as vítimas podem ter a exercer
uma forma de vingança contra outras
vítimas ainda mais frágeis do que elas
e mais incapazes de se defender.
Sobre os animais tratados dessa
forma (búfalos trazidos da Romênia),
Rosa Luxemburgo diz em sua carta:
“Eles são espancados de forma terrí-
vel antes que o ditado ‘Vae victis’
também lhes possa ser aplicado. [...]
Só em Breslau há uma centena desses
animais; além disso, acostumados
com os ricos prados romenos, eles
passam a receber uma parca e mise-
rável ração. São explorados descara-
damente, puxam cargas sem limite e
muitas vezes sucumbem a esse tra-
balho”. Estamos falando aqui dos
vencidos da guerra, muito facilmente
esquecidos e que certamente recebe-
ram, acreditamos, muito menos pie-
dade do seu destino do que outros. O
que Rosa Luxemburgo conseguiu en-
xergar por trás dos acontecimentos e


comportamentos que descreve, no
pátio de uma prisão, foi simplesmen-
te a própria face da guerra: “Nesse ín-
terim, os presos azafamavam-se ao
redor da charrete, descarregando os
fardos pesados a fim de levá-los para
dentro; quanto ao soldado, ele anda-
va de um lado para o outro no pátio,
com as duas mãos nos bolsos, sorrin-
do e assobiando uma música da mo-
da. Nessa ocasião, revi toda a magní-
fica guerra desfilar diante de mim”.
O que a carta evoca de maneira in-
tensa é a espécie de solidariedade es-
pontânea que se estabelece entre a
prisioneira, que é também, em certo
sentido, uma vítima da guerra – já que
ela fora encarcerada em parte graças
à sua oposição declarada, radical e
militante a esta –, e a vítima represen-
tada pelo animal martirizado. Há al-
go de verdadeiramente comovente na
descrição que lhe é dada, de forma
que ele se torna, por assim dizer, hu-
mano, transformando-se em uma es-
pécie de irmão no sofrimento e na
desgraça: “Aquele [em referência aos
animais] que sangrava tinha o olhar
fixo, com uma tal expressão no rosto


  • e olhos negros e doces como os de
    uma criança que acaba de chorar. Era
    verdadeiramente a expressão de uma
    criança que foi severamente castiga-
    da e não sabe por que, não sabe como
    escapar desse tormento e dessa vio-
    lência brutal. [...] Eu estava ali parada
    e o animal olhou para mim, e senti lá-
    grimas escorrerem pelo meu rosto –
    eram suas lágrimas, e eu não poderia
    estar mais dolorosamente compade-
    cida por esse irmão querido do que
    por minha incapacidade de aliviar
    seu mudo tormento”.
    Edward Timms, em sua biografia
    de Kraus, destaca com pertinência
    que “os paralelos entre Kraus e Lu-
    xemburgo são notáveis. Ambos os
    autores invocam uma visão de har-
    monia original para contestar a ideia
    de uma natureza com os dentes e as
    garras sujos de sangue, frequente-
    mente explorada para justificar o
    conf lito militar e a dominação ra-
    cial. Kraus reforçou ainda mais sua
    posição quando recebeu uma carta
    de uma megera da aristocracia que
    zombava de Luxemburgo como uma
    dessas ‘mulheres histéricas’ fadadas
    a ter um triste fim caso persistam em
    s e m e a r c o n f u s ã o”.^3 A “megera” em
    questão era uma aristocrata húngara
    que se apresentou como ex-assinan-
    te do Die Fackel e declarava ter tro-
    peçado no número em que Kraus re-
    produziu e comentou a carta de Rosa
    Luxemburgo.
    No número 462-471 dessa revista,
    Kraus questiona-se sobre como os
    cães vivenciaram “sua” guerra e con-
    seguiram suportar a quase total falta
    de comida e cuidados imposta pela
    escassez generalizada e pela indife-


rença por parte da espécie suposta-
mente “superior” que os condenou à
servidão e os privou de todos os tipos
de direitos, por assim dizer: “Atual-
mente, os cães são atacados de diver-
sas formas, especialmente nos jor-
nais de domingo, por ‘roubar’ comida
dos homens. Essas críticas são infun-
dadas. Abstraindo completamente o
fato de que eu daria com muito mais
boa vontade um pouco de comida a
um cachorro do que o faria a qual-
quer jornalista, uma coisa que sei é
que a maioria dos homens sempre
tem mais comida do que a maioria
dos cães, os quais nem por isso guer-
reiam entre si nem são responsáveis
pelo estado de coisas, cuja culpa in-
cumbe aos homens. Pois, embora
possa haver casos isolados em que
um cachorro roube comida de um
homem, há muitos casos em que um
homem se vinga devorando o cachor-
ro. O inverso jamais ocorreu. [...] Tal-
vez pelo fato de que a carne de uma
espécie cujos membros lutam entre si
com gases venenosos seja repulsiva
para a espécie melhor”.
Kraus era da opinião de que “o
testemunho único em seu gênero de
humanidade e de poesia” que consti-
tui a carta de Rosa Luxemburgo deve-
ria aparecer em todos os livros esco-
lares, entre Goethe e Claudius, e os
jovens leitores deveriam ser informa-
dos de que “o corpo que envolveu
uma alma de tamanha magnitude foi
abatido a coronhadas de fuzil”.^4 Seria
possível dizer, parece-me, que certas
passagens da resposta de Kraus à car-
ta da “Sra. Von X-Y”, como a que se-
gue, também mereceriam ser incluí-
das nos livros escolares:
“A humanidade que considera o
animal um ser amado tem mais valor
do que a bestialidade que zomba dis-
so e brinca com a ideia de que um bú-
falo não fica ‘particularmente’ espan-
tado por ter de puxar uma carroça em
Breslau e levar pancadas com o cabo
de um chicote. É esse tipo de espírito
repugnante que faz esses senhores da
Criação e suas damas dizerem, ‘desde
a mais tenra idade’, que o animal não
sente nada, tão desprovido de sensa-
ções quanto seu proprietário, pela
simples razão de que ele não foi dota-
do com a mesma porção de arrogân-
cia e não é capaz de expressar seus so-
frimentos na mesma linguagem de
que este último dispõe”.^5
Os protestos de Rosa Luxemburgo
e Kraus se opõem diretamente a uma
visão do mundo animal que, no que
lhe concerne, pouco sabe além de in-
citar a espécie humana a se inspirar
em seu exemplo para reaprender a
dureza, a falta de misericórdia e a
crueldade que são supostamente as
leis básicas da vida. Trata-se de acei-
tar mais facilmente a ideia de que a
natureza impõe a todos os viventes a

luta permanente, a subjugação dos
inferiores e a eliminação dos inaptos.
Como diria Hitler, o mundo animal
não tem, como o dos homens, a possi-
bilidade e os meios de tentar impedir
a ação das leis da natureza, que de to-
da forma acabam sempre vencendo,
mais cedo ou mais tarde: “Na nature-
za, o que não tem força vital perece
por si mesmo; somente o homem cul-
tiva aquilo que porta fraqueza vital”.^6
É, pois, imperativo e urgente, para
nossa espécie, concordar finalmente
em substituir a humanidade pusilâ-
nime e sentimental que se exerce es-
sencialmente na proteção e na pro-
moção artificiais dos fracos por outra
forma de humanidade, mais viril e
mais conforme à maneira como as
coisas se passam no mundo dos seres
vivos em geral, que é chamado em
Mein Kampf de “a humanidade da na-
tureza”: “O homem pode desafiar por
algum tempo as leis eternas da von-
tade de conservação contínua; po-
rém a vingança chega, mais cedo ou
mais tarde. Uma espécie mais forte
expulsará as fracas, pois o impulso
de vida em sua forma última sempre
quebrará os laços ridículos de uma
dita humanidade das formas singu-
lares, para substituí-la pela humani-
dade da natureza, que aniquila a fra-
queza para dar lugar à força”.^7
Assim se expressa uma transposi-
ção para o mundo animal de algumas
das características mais detestáveis,
porém frequentemente também das
mais específicas, do mundo humano
em si. Tentar pelo menos não ser mais
bestial ou mais celerado do que os
animais poderia muito bem, nessas
condições, constituir um progresso
considerável para o homem. Há talvez
algo mais a aprender com eles além de
insensibilidade e crueldade. Uma hu-
manidade capaz de se comportar de
maneira humana para com os ani-
mais e de tratá-los como iguais presta
mais serviços a si mesma do que aque-
la que os trata quase como um mate-
rial do qual ela se serve.
A questão aqui formulada era, aos
olhos de Kraus, suficientemente im-
portante para que ele a retomasse
muitas vezes com insistência. Em
Hunde, Menschen, Journalisten [Cães,
humanos, jornalistas], ele reproduz
muitos trechos de diversos autores
que se expressaram de maneira posi-
tiva e amigável ou, ao contrário, aber-
tamente hostil ou negativa sobre a
questão dos direitos dos animais e do
dever de humanidade que temos em
relação a eles. Como era de esperar,
coube a Schopenhauer, a quem deu
um lugar bastante privilegiado, a hon-
ra de ter dado o exemplo que devería-
mos tentar seguir nesse assunto. E é a
Spinoza, cuja posição Schopenhauer
já havia contestado radicalmente, que
cabe o papel de vilão da história.

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