Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33


WALTER BENJAMIN 80 ANOS DEPOIS


Um intelectual antifascista


A atualidade da reflexão benjaminiana parece inegável hoje, quando o mundo passa por
uma nova rodada de ascensão da extrema direita

POR FABIO MASCARO QUERIDO*

N


a noite do dia 26 de setembro de
1940, Walter Benjamin fez seu
derradeiro gesto político e inte-
lectual: sob ameaça da perse-
guição nazista, da qual buscava esca-
par, o filósofo ingeriu uma dose fatal
de morfina, em Port-Bou (Catalunha).
Para Benjamin, num momento em
que o beco parecia sem saída, o suicí-
dio apresentou-se como o último ato
de resistência à apropriação fascista.
Marginal e outsider, Benjamin
tornou-se, depois de morto, um íco-
ne, um “monumento de cultura”, pa-
ra utilizar um de seus termos consa-
grados, não sem lembrar que, como
ele havia escrito nas “teses sobre o
conceito de história”, poucos meses
antes do suicídio, todo “monumento
de cultura” carrega também um “mo-
numento de barbárie”. Pois bem: é
nessa intersecção entre cultura e bar-
bárie que o pensamento de Benjamin
pode ser compreendido hoje, se qui-
sermos livrá-lo do “conformismo”
que busca se apoderar de seu legado.
Pois, se há um Benjamin que ainda
nos fala, este é o Benjamin que nos
advertira que o “progresso”, longe de
aplacar a fúria da barbárie, propor-
ciona a ela novas possibilidades,
mesmo quando a história parece es-
tar a nosso favor. O fascismo estava –
e está – aí para mostrar.
Foi o fascismo, portanto, o princi-
pal adversário político de Benjamin, o
que salienta o caráter algo espantoso,
ainda que compreensível, de sua au-
sência no rol das principais referên-
cias utilizadas pela esquerda para a
apreensão crítica do atual avanço
mundial da extrema direita. Com-
preensível porque, quando pensa no
fascismo, Benjamin pensa sobretudo
na melhor forma de combatê-lo, ra-
zão pela qual sua ênfase recai na pro-
blematização das tomadas de posi-
ções antifascistas da própria esquerda
(social-democrata ou stalinista), es-
querda cujo otimismo histórico a dei-
xou em maus lençóis no momento de
enfrentar a ameaça da catástrofe.
Para Benjamin, é a dinâmica da
luta de classes que, sob condições de-
terminadas, define a história. Assim,
se não é a principal responsável, os
caminhos tomados pela esquerda e
pelo movimento das classes subalter-
nas também explicam, para o bem ou
para o mal, o processo que levou o

fascismo ao poder. Na visão benjami-
niana, o modo como a esquerda he-
gemonicamente interpretou a amea-
ça fascista, em nome do progresso
contra a barbárie, deixou uma aveni-
da aberta para o avanço da extrema
direita. Afinal, tal representação
“progressista” da história deitava
suas raízes e fundamentos filosóficos
na burguesia iluminista. A mesma
classe que, no entreguerras, não hesi-
tou em chancelar o governo totalitá-
rio da vida, a “exceção” inevitável à
preservação da “norma” (burguesa).
Daí a conhecida provocação de Max
Horkheimer aos democratas de oca-
sião, segundo a qual se não for para
falar de capitalismo é melhor nem fa-
lar do fascismo.
Nesse sentido, enfrentar o fascis-
mo em nome do progresso seria algo
como, mutatis mutandis, lutar contra
o capitalismo em nome do liberalis-
mo. O fascismo é expressão moderna
do progresso, forma de “revolução
passiva” adequada ao avanço do ca-
pitalismo contra a ameaça comunis-
ta. Longe de ser o resultado de uma
mera regressão irracionalista, embo-
ra também o seja, o fascismo é a ra-
zão burguesa em sua dimensão mais
violenta, reacionária, “mitológica”.
É por isso que, para Benjamin, co-
mo escreveu na 11ª das “teses” de
1940, “não há nada que tenha cor-
rompido tanto o operariado alemão
quanto a crença de que ele nadava
com a correnteza”. É essa crença que
explica, depois de consumada a der-
rota, o “assombro”, a perplexidade
paralisante típica dos que, seguros de
sua superioridade moral, se desespe-
ram ante o desmentido da História
em que tanto confiavam. É o “assom-
bro com o fato de que os aconteci-
mentos que vivemos no século X X
‘ainda’ sejam possíveis”, como se eles
não fossem possíveis senão no século
X X, quando o progresso deu vazão a
seus impulsos mais destrutivos.

BENJAMIN E O ANTIFASCISMO HOJE
A atualidade da ref lexão benjaminia-
na parece inegável hoje, quando o
mundo passa por uma nova rodada
de ascensão da extrema direita. Tan-
to mais porque, de novo, a reação de
parcela expressiva das esquerdas
vem se resumindo à invocação da
“norma”: da razão, do progresso e, na

atual pandemia global, da ciência e
dos especialistas. No Brasil, em parti-
cular, em função do período lulista,
essa reivindicação da norma ganha
ares de nostalgia em relação a um
passado recente em que a história pa-
recia enfim estar caminhando no
bom sentido.
Assim, é como se o bolsonarismo,
essa reação protofascista ao avanço
lulista, não fosse senão o retorno do
recalque reacionário e irracionalista
que, latente na sociedade brasileira,
reagiu ao salto progressista. Não por
acaso, depois do golpe de 2016 e da
catástrofe de 2018, muito se falou em
“volta do atraso”, como se o único ho-
rizonte possível, e desejável, fosse a
defesa das instituições e dos especia-
listas contra a ameaça autoritária,
enquanto esta, por sua vez, não hesi-
ta em reivindicar a soberania popu-
lar como caução de legitimidade para
o atropelo das regras democráticas.
O ponto é que são os limites dessa
institucionalidade, seu déficit demo-
crático, que explicam, ao menos em
parte, o tipo de reação social e política
que vem se produzindo desde 2013 e
que não precisaria ter tomado o rumo
que tomou. Defender as “instituições”
(o “direito” do “Estado democrático”)
contra as investidas autoritárias é
uma coisa. Tornar essa defesa o hori-
zonte de expectativa das forças so-
ciais e políticas transformadoras é
outra. Para dizer como Benjamin, não
há nenhuma norma do progresso a
ser reconquistada, em contraposição
à exceção fascista, já que esta é produ-
to bastardo daquela.
Daí a necessidade de os domina-
dos desconfiarem das garantias do
progresso. Do ponto de vista dos
oprimidos, a “exceção” e a “norma”
não são dois polos inconciliáveis: elas
se encruzam conforme as possibili-
dades da dominação em cada presen-
te determinado. É preciso, portanto,
escreveu Benjamin, “chegar a um
conceito de história que corresponda
a essa verdade. Nesse momento, per-
ceberemos que nossa tarefa é instau-
rar um verdadeiro estado de exceção;
com isso, nossa posição na luta con-
tra o fascismo ficará mais forte. Este
se beneficia da circunstância de que
seus adversários o afrontem em no-
me do progresso, considerado como
uma norma histórica”.

Num país como o Brasil, em que
“o progresso é uma desgraça, e o
atraso, uma vergonha”, como escre-
veu certa vez Roberto Schwarz, o
alerta benjaminiano parece ainda
mais certeiro. Quando nos coloca-
mos do lado do progresso, relegando
aos adversários ou inimigos o papel
de retardatários que, inconformados
com a marcha da história, reagem de
modo agressivo e autoritário, deixa-
mos de bandeja ao fascismo o manejo
do passado. Se não passa é porque es-
se passado se atualiza no presente,
tornando-se a aparente exceção da
norma. “Instaurar um verdadeiro es-
tado de exceção”, nesse sentido, im-
plica a elaboração de um projeto he-
gemônico em torno dos interesses e
valores dos oprimidos, em oposição à
“norma” (o capitalismo) da qual se
originou a “exceção” fascista.
Para Benjamin, a chave para isso
estava na política, lócus por meio do
qual se torna possível construir cole-
tivamente um novo horizonte de ex-
pectativas, para além da defesa mais
necessária dos escombros da institu-
cionalidade. Muitas vezes, a lei pode
até estar ao nosso lado, mas é do con-
junto das relações sociais que de-
pende seu funcionamento hegemô-
nico. É na sociedade, portanto,
notadamente na capacidade das
classes subalternas de se projetarem
politicamente como um novo poder
instituinte, que se joga o destino do
país e do mundo.
Deixada a si mesmo, a “corrente-
za” do progresso nos levará à barbá-
rie, sob a norma ou a exceção. Não
por acaso, disse Benjamin, “antes
que a centelha chegue à dinamite, é
preciso que o pavio que queima seja
cortado”. E ele só será cortado se lo-
grarmos, desde já, avançar na cons-
trução de uma nova exceção, quer
dizer, de outro mundo tão aparente-
mente improvável quanto necessá-
rio, antes que o poço se revele um
abismo. É nessa frágil mas resiliente
esperança que nosso presente se en-
contra com aquele de Benjamin,
exatamente oitenta anos depois de
seu suicídio.

*Fabio Mascaro Querido é professor do
Departamento e do Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia da Unicamp.

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