32 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
A concepção defendida pelo autor
da Ética é, de fato, que o estatuto dos
animais não é de modo algum o de
congêneres e mesmo eventualmente
de companheiros com os quais possa-
mos eventualmente manter relações
de natureza social, e sim de instru-
mentos que temos o direito de utilizar
mais ou menos como quisermos, em
função de nossas necessidades e de
nossos interesses: “À parte os homens,
nada conhecemos de particular na na-
tureza que possa nos conferir algum
prazer espiritual ou com o qual possa-
mos ter laços de amizade ou algum ti-
po de relacionamento social. Logo, o
que se encontra na natureza, à parte
os homens, a norma de nossa utilidade
não exige que o conservemos, mas nos
aconselha a conservá-lo para usos di-
versos, a destruí-lo ou a adaptá-lo por
todos os meios ao nosso uso”.^8
Não pode haver para nós, portan-
to, nenhuma obrigação real de garan-
tir o bem-estar e a conservação dos
animais e dos seres vivos em geral, na
medida em que eles dependem de nós,
direta ou indiretamente, para sua
existência, pois a questão de saber se
devemos ou não tentar conservá-los
depende na verdade apenas do uso,
vantajoso ou não, que podemos fazer
deles se escolhermos mantê-los vivos.
Schopenhauer atribui a concep-
ção que Spinoza defende a esse res-
peito, a seus olhos incompreensível e
aberrante, à persistência da inf luên-
cia da Bíblia em seu espírito, em parti-
cular do relato do Gênesis – “Deus
disse: ‘Faça-se o homem à nossa ima-
gem e semelhança, e que ele governe
os peixes do mar, os pássaros do céu,
os animais, todas as feras e todos os
insetos que rastejam sobre a terra’”
(Gênesis, 1:26) – e da tradição judaica
ou judaico-cristã. É precisamente es-
sa a questão sobre a qual se debruçam
as últimas páginas de O mundo como
vontade e como representação: “Spino-
za não podia se afastar do judeu: quo
semel est imbuta recens servabit odo-
rem [a argila conservará por muito
tempo o perfume de que tenha sido
um dia impregnada] (Horácio, Epísto-
las, I, 2, v. 69). O que há de decisiva-
mente judeu nele e que, junto com o
panteísmo, é o mais absurdo e simul-
taneamente horrível é seu desprezo
pelos animais, nos quais vê apenas
coisas destinadas ao nosso uso e às
quais recusa qualquer direito”.^9
QUANDO A “ESCÓRIA”
SE AGITA DE DESPUDOR
Em um complemento posteriormen-
te adicionado ao que havia escrito em
Parerga und Paralipomena sobre o
mundo animal e sobre a relação que
mantemos com ele, Schopenhauer
retornou a essa questão e enfatizou o
ponto: “O animal, no essencial e no
ponto principal, é o mesmo que nós
somos: a diferença reside apenas no
acidente, o intelecto, e não na subs-
tância, que é a vontade. O mundo não
é uma obra de má qualidade e os ani-
mais não são um produto fabricado
para nosso uso. [...] Não é apenas a
verdade, mas igualmente a moral que
está do nosso lado. [...] O maior bene-
fício das ferrovias é que elas poupam
a milhões de cavalos de trabalho sua
lamentável existência”.^10
A última frase relaciona o advento
do reino universal da máquina à con-
dição miserável à qual um número
considerável de animais se viu redu-
zido por culpa do homem, mas para
apontar precisamente um dos raros
aspectos do primeiro que pode ser
considerado positivo. Esse também é
um ponto sobre o qual Kraus poderia
sentir-se relativamente próximo de
Schopenhauer, pois ele também está
convencido de que a maneira como o
ser humano se transformou em ado-
rador e escravo da máquina tem algo
a ver com a pouca consideração que
passou a nutrir pelas outras espécies
e pela vida em geral, e com o tipo de
tirania impiedosa que faz reinar so-
bre uma parte do mundo animal.
Pode parecer um pouco estranho
que, no verão de 1916, momento em
que a guerra, arrastando-se havia
quase dois anos, atingira um grau ex-
tremo na intensidade dos combates e
na perda desproporcional de vidas
humanas, Kraus retorne com tanta
insistência sobre a questão do respei-
to que é devido aos animais e da vio-
lência e atrocidades que a guerra os
obriga também a suportar. Mas ele
empenhava-se em convencer seus
leitores de que a humanidade estaria
totalmente errada em imaginar que
poderia tratar esse problema como
quase insignificante.
Quando investigamos o que tor-
nou possível uma catástrofe como a
da Primeira Guerra Mundial, não se
pode esquecer de considerar certo
número de características constituti-
vas e de fatores essenciais, contra os
quais a social-democracia não encon-
tra muito mais razões para se insurgir
do que seus oponentes da burguesia e
que inclusive ela não considera real-
mente dignos de preocupação.
Kraus pensa em coisas com as
quais seria melhor, justamente, tentar
acabar, em vez de se propor a retomá-
-las, ampliando-as e acelerando-as:
tudo aquilo que tenha a ver com o
produtivismo e o consumismo desen-
freado, a exploração indiscriminada e
desmedida dos recursos naturais, a
indiferença em relação ao meio am-
biente e à degradação que as ativida-
des humanas, sua vontade de poder e
sua avidez aparentemente ilimitada
impõem-lhe cada vez mais, a falta de
consideração pelos animais e a igno-
rância deliberada e obstinada do risco
de que, sob o pretexto de melhorar
continuamente as condições de vida
de nossa espécie, acabemos por tor-
nar problemática e acabar impossibi-
litando a preservação da vida das ou-
tras e da vida em geral etc. Kraus
argumenta que é sobre questões des-
se tipo que um partido que se diz re-
volucionário deveria mostrar-se mui-
to mais revolucionário do que a
social-democracia. Mas o que o impe-
de de sê-lo é também, infelizmente,
em grande parte, o interesse que as
próprias pessoas que ela defende têm,
compreensivelmente, na continuação
do processo que deveria tentar, se
possível, reduzir e até interromper.
Não é preciso procurar alhures a
razão pela qual mesmo aqueles que
em princípio estão mais bem posicio-
nados para desejar a mudança pos-
sam ser impedidos simultaneamente
de realmente desejá-la e até mesmo
determinados a lutar contra aqueles
que podem ser tentados a buscar im-
por tal mudança. Quando ref letimos,
como já havia feito Kraus, sobre esse
tipo de situação, não podemos nos
surpreender que, em uma questão
como a do aquecimento global, por
exemplo, cuja urgência se torna real-
mente extrema, a humanidade atual
esteja provavelmente condenada até
o fim, se houver um fim, a tentar fa-
zer coexistir a proclamação de que a
catástrofe é quase certa e que mu-
danças radicais são absolutamente
indispensáveis com a busca por to-
dos os meios possíveis e imagináveis
de evitá-las e contentar-se com medi-
das que permanecem, em sua maior
parte, quase simbólicas e às vezes
francamente irrisórias.
Isso não pode, é claro, ser motivo
para considerar que, em comparação
com um problema como esse, as ques-
tões de justiça social e igualdade não
sejam primordiais ou estejam até se
tornando mais ou menos secundárias.
Obviamente, não é o que Kraus pensa-
va; e o que ele teria desejado e espera-
do em vão da social-democracia era
que ela se mostrasse, a respeito dos
dois tipos de questão – que não podem
ser tratadas de forma completamente
independente uma da outra –, menos
conciliadora e muito mais revolucio-
nária. A ameaça bem real que repre-
senta para a humanidade o preocu-
pante aprofundamento da injustiça e
da desigualdade é mais um assunto de
grande atualidade sobre o qual Kraus
enxergou muito mais longe do que a
maioria de seus contemporâneos.
Em sua resposta à Sra. Von X-Y,
Kraus estabelece uma conexão direta
entre a maneira como ela se expressa
a respeito de Rosa Luxemburgo e a
aprovação fundamental que pessoas
como ela deram à guerra. Seria preci-
so que ao lado da carta de Rosa Lu-
xemburgo fosse publicada também,
nos livros didáticos, “a carta dessa
megera, a fim de inculcar na juventu-
de não só o respeito pela grandeza da
natureza humana, mas também o re-
púdio diante de sua baixeza”. Essa é
uma das razões pelas quais Kraus ex-
pressa abertamente o desejo de que o
comunismo ainda tenha uma vida
suficientemente longa, para ao me-
nos impedir a corja de que ele fala de
desfrutar serenamente dos benefí-
cios conquistados e dormir tranqui-
lamente: “Que Deus o conserve como
uma ameaça constante acima daque-
les que possuem bens e que, para
protegê-los, gostariam de enviar to-
dos os outros para o front da fome e
da honra patriótica, embalados pelo
consolo de que os bens materiais não
são os bens supremos. Que Deus o
guarde para que essa escória já agita-
da de despudor não se torne ainda
mais despudorada, para que aqueles
que são os únicos a ter acesso ao pra-
zer e pensam que a humanidade que
lhes serve já teve bastante amor após
a terem infectado com sífilis tenham
pelo menos seu sono perturbado por
um bom pesadelo”.^11
A “escória” de que ele fala tem ho-
je motivos melhores do que nunca
para acreditar que ganhou a guerra
contra os pobres, e realmente o fez
quase por W.O. Ela pode, como ele
disse, agitar-se mais uma vez de des-
pudor e manifestar a mesma propen-
são a pregar sermões a suas vítimas,
dar-lhes lições de serenidade e sabe-
doria e explicar-lhes que elas não têm
nenhuma razão para sentir ódio ou
revoltar-se contra os supostos res-
ponsáveis por seu infortúnio.
*Jacques Bouveresse é filósofo.
1 Verwandlungen”, Die Fackel, Viena, n.462-
471, out. 1917, p.171.
2 “Lettre de Rosa Luxemburg à Sonia Liebk-
necht” [Carta de Rosa Luxemburgo a Sonia
Liebknecht]. In: “Les Guerres de Karl Kraus”
[As guerras de Karl Kraus], Agone, n.35/36,
2006, p.258.
3 Edward Timms, Karl Kraus Apocalyptic Satirist,
Culture and Catastrophe in Habsburg Vienna
[A sátira apocalíptica de Karl Kraus, cultura e
catástrofe na Viena dos Habsburgos], Yale
University Press, New Haven e Londres, 1986.
4 “Vorlesungen (mit dem Brief Rosa Luxem-
burgs)” [Leituras (com a carta de Rosa Luxem-
burgo)], Die Fackel, n.546-550, jul. 1920, p.5.
5 “As guerras de Karl Kraus”, op. cit.
6 Adolf Hitler, Monologe im Führerhauptquartier
1941-1942, notas de Heinrich Heim, editado
por Werner Jochmann.
7 Adolf Hitler, Mein Kampf, publicado por Chris-
tian Hartmann, Thomas Vordermayer, Othmar
Plöckinger, Roman Töppel, Instituto de Histó-
ria Contemporânea, Munique-Berlim, 2016.
8 Ética, Parte IV, apêndice, cap. XXVI. In: Spino-
za, Œuvres complètes [Obras completas],
Paris, Gallimard, 1954.
9 Arthur Schopenhauer, Le Monde comme vo-
lonté et comme représentation [O mundo
como vontade e como representação], Pres-
ses Universitaires de France, Paris, 1966.
10 Arthur Schopenhauer, Senilia, Gedanken im
Alter [Senilia, pensamentos de um homem
idoso], editado por Franco Volpi e Ernst Zie-
gler, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchge-
sellschaft, Darmstadt, 2011.
11 “As guerras de Karl Kraus”, op. cit.
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