Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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34 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


Da loja à revista


Em dois séculos, a economia de mercado produziu um novo tipo de humano: o


consumidor. Mas como a família autossuficiente do século XVIII, que possuía alguns


objetos úteis, transformou-se em um depósito onde milhares de coisas são empilhadas?


Foi necessário forjar um imaginário do zero e, nisso, a imprensa desempenhou


um papel decisivo


POR ANTHONY GALLUZZO*


E OS JORNAIS VENDERAM O PÚBLICO AOS ANUNCIANTES


A


história da sociedade de con-
sumo pode ser compreendida
como a da multiplicação das
imagens de mercadorias. De-
senvolvendo-se sem parar desde o
século XIX, a imagética de massa
aniquilou a autossuficiência psicoló-
gica das anteriores. Ela permitiu à
mercadoria conquistar os imaginá-
rios por meio de sua presença virtual
cotidiana. Jornais, catálogos, revis-
tas, litografias, cinema: as novas mí-
dias colocaram progressivamente os
ocidentais numa atitude de especta-
dores. Ensinaram às populações o
prazer de ver e a vontade de consu-
mir. Educaram as pessoas para a
mercadoria, fazendo desta um sím-
bolo universal, uma linguagem co-
mum, um fato natural que parece
sempre ter existido.
Ao longo de todo o século XIX, os
comerciantes fizeram circular mas-
sas crescentes de “papéis”: cartas, li-
tografias, catálogos, que possibilita-
ram familiarizar as populações com
suas marcas e produtos. Mas, além
dessa disseminação de imagens, foi a
aliança com o mundo da imprensa
que proporcionou aos comerciantes
um poderoso meio de se instalar nas
consciências. Os jornalistas se reve-
laram formidáveis profissionais da
fabricação de públicos, capazes de
criar o comum, de impor de modo co-
tidiano às massas seus assuntos de
conversa. Quando os proprietários
dos jornais compreenderam que sua
prosperidade provinha menos do fa-
to de vender papel aos leitores, e sim
público aos anunciantes, a imprensa
começou a trocar sua capacidade de
mobilizar a sociedade por dinheiro;
encontrou seu modelo econômico, a
base de sua massificação. Os melho-
res periódicos do começo do século
XIX sobreviveram graças a alguns
milhares de assinaturas; os grandes
títulos dos anos 1890 e 1900 vende-
ram milhões de exemplares.
O jornal ilustrado aboliu as dis-
tâncias por meio da justaposição das
imagens do mundo. O presente não
era mais somente o aqui e o agora:
oferecia a possibilidade de pensar no
que os homens de longe viviam e sen-


danças de forma, de cores e de dispo-
sição. Ele acaba por lamentar a obso-
lescência de suas compras passadas e
desenvolve uma necessidade impe-
riosa de renovação.
A partir do fim do século XIX, as
receitas publicitárias se tornaram
essenciais: a imprensa vendeu seus
leitores a seus anunciantes. Inscre-
veu-se de fato em uma relação de su-
bordinação e dependência em rela-
ção aos comerciantes. A revista
precisava criar em suas páginas uma
atmosfera editorial favorável, ou se-
ja, um conteúdo temática e filosofi-
camente compatível com as merca-
dorias promovidas pela publicidade.
Foi assim que, nas revistas femini-
nas, os artigos passaram a se dedicar
sobretudo à alimentação, à moda e
aos cosméticos. Encontrávamos,
próximo a um artigo ressaltando a
importância de uma boa higiene
corporal, uma propaganda de sabo-
nete; ao lado de uma reportagem so-
bre um desfile de moda, o anúncio
de uma grande marca de roupas. O
conteúdo editorial da revista era um
ambiente ideal no qual o anúncio se
encaixava para multiplicar o poder
persuasivo e simbólico.
A rentabilidade e a perenidade da
revista dependiam em grande parte
dessa “capacidade de acolhimento”.
Esta se degradava se a revista desen-
volvia uma proposta contrária às
preocupações comerciais. Projetada
para o longo prazo, essa submissão
da redação ao comercial tomou for-
mas às vezes muito explícitas: a mili-
tante feminista Gloria Steinem reve-
lou em 1990, por exemplo, que a
fabricante de sabonetes e detergen-
tes Procter & Gamble proibiu as re-
vistas norte-americanas de colocar
suas propagandas em todas as edi-
ções que falassem mal das religiões
ou tratassem de temas como sexuali-
dade, drogas, controle de armas de
fogo ou aborto.^4
Ao contrário da publicidade tele-
visiva, que interrompe os progra-
mas, a das revistas se insere na conti-
nuidade visual da mídia. Conteúdos
editoriais e propagandas escrevem
juntos um discurso que entrega aos
leitores um ideal no qual se projetar,
de modo a criar ilusões, um sonho
desperto. O que chamamos hoje de
“publieditorial” apareceu há quase
um século e meio: nos anos 1880, a
loja Le Bon Marché mandou publicar
na L’Illustration artigos laudatórios
com esse propósito.^5 Outra prática –
mais insidiosa – que reforça a confu-
são editorial/publicidade era o com-
partilhamento de estilos visuais
graças aos artistas que, dos anos
1890 aos 1930, produziam ilustrações
ao mesmo tempo para a imprensa e
para os anunciantes. Os personagens
que povoavam então as capas das

tiam. Essas visões novas afetaram
profundamente as populações, que
podiam a partir daquele momento
projetar-se em experiências desco-
nhecidas e alimentar sonhos desper-
tos. O que as pessoas compartilha-
vam então não era mais apenas a
terra que habitavam e as palavras
que trocavam cara a cara, mas tam-
bém o que liam e o que viam. Assisti-
mos, assim, a uma nacionalização
dos temas de conversa. A atualidade,
os folhetins, as amenidades, os catá-
logos e os livros escolares “sincroni-
zaram” as representações e deram
forma a uma consciência e a uma me-
mória coletivas.

UM PASSEIO INVERTIDO
Ao mesmo tempo, o impresso retirou
os comerciantes das limitações das
vitrines para fazê-los penetrar nos la-
res. Podemos também considerar os
catálogos, jornais e coleções de lito-
grafias como lojas de papel, suportes
de uma captação virtual. Em suas pá-
ginas, os catálogos materializam os
produtos com ilustrações detalhadas,
equivalentes a réplicas das pratelei-
ras do comércio; fazemos compras a
todo momento, ficando em casa, e
sem gastar nada. É um passeio inver-
tido: não são mais as pessoas que vão
à mercadoria, é a imagem da merca-
doria que desfila sob seus olhos.
Se a imagem possibilita aos pro-
dutos ocupar os olhares e se instalar
nos imaginários, é por ser, em si, ao
mesmo tempo uma mercadoria e o
veículo de outras mercadorias. Essa
dupla natureza da imagem teve seu
arremate com o surgimento, no fim
do século XIX, do magazine (“revis-
ta”, em francês), termo derivado de

magasin (“loja”), e que significava
em sua origem o entreposto de mer-
cadorias. Sua denominação não dei-
xava dúvidas: le magazine, c’est le
magasin chez soi [a revista é a loja
dentro de casa]. À mobilidade física
das mercadorias no entreposto – a lo-
ja – correspondia a mobilidade visual
e mental das mercadorias e de suas
imagens na revista. Essa foi a primei-
ra mídia de massa inteiramente de-
dicada ao consumo.
Esse tipo de periódico surgiu e se
massificou primeiro nos Estados
Unidos, no fim do século XIX. Entre
1890 e 1905, as publicações mensais
passaram de 18 milhões para 64 mi-
lhões de exemplares por edição.^1 A
Ladies’ Home Journal, título pioneiro
e campeão de todas as categorias,
passou de uma tiragem de 100 mil
exemplares em 1884 para 1 milhão
em 1904. Na esteira dos Estados Uni-
dos, diversos países ocidentais ado-
taram a fórmula da revista feminina
com mais ou menos velocidade. Na
França, os primeiros periódicos do
gênero – Votre Beauté e Marie-Claire


  • apareceram nos anos 1930. Como
    em uma grande loja, os leitores das
    revistas passeavam pelas seções. Ed-
    ward Bok, redator-chefe da Ladies’
    Home Journal, também trabalhou a
    analogia: “Uma revista [magazine] de
    sucesso é bastante similar a uma loja
    [magasin] de sucesso: deve entreter
    com o frescor e a variedade de suas
    mercadorias, para atrair o olhar e
    aproveitar o patrocínio de seus con-
    s u m i d o r e s”.^2 Regularmente preen-
    chidas, as seções da revista, bem co-
    mo as prateleiras das lojas,
    celebravam a abundância e a varie-
    dade dos produtos; atraíam a circula-
    ção com uma capa colorida e seduto-
    ra – como uma vitrine. Tratava-se de
    um f luxo: cada nova edição tornava a
    anterior obsoleta, divulgando novas
    modas e novos objetos. Lia-se em
    1954 na Marie-Claire: “Nossa atuali-
    dade é a de sempre, a incansável
    atualidade da vida que muda a cada
    mês. Que muda seu chapéu, seu bu-
    quê de f lores e sua tigela de frutas”.^3 O
    consumidor/leitor acostuma o olhar,
    faz que este se torne sensível às mu-


“Um historiador que só
confiasse nesses recor-
tes sociais poderia acre-
ditar que todos os norte-
-americanos de então
eram ricos e distintos”

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